Última parte: O Debate da Regionalização e a renovação política de Onésimo Silveira
JMN tem-se, portanto, desdobrado em esforços para diluir ou esvaziar o conteúdo do debate sobre a regionalização, após ter prometido a sua realização e a abertura de um Livro Branco. É por estes sinais inquietantes que o leitor comum pode confundir-se com essa insuficiente explicitação do pensamento do Onésimo Silveira, e indo mesmo ao extremo de nelas poder descortinar, quiçá injustamente, uma tentativa de aproximação conciliatória às dúbias intenções do governo, o que, a confirmar-se, voltaria a ser altamente comprometedor da credibilidade daquele político mindelense. Por conseguinte, é de toda a conveniência que o Onésimo Silveira evite esta similitude expressiva entre ele e o JMN em matéria de regionalização, ou que afaste as eventuais suspeitas da existência de uma aliança objectiva ou de um acordo implícito sobre o modelo de regionalização minimalista ou de compromisso, antes de qualquer debate, o que a ser verdade frustraria as pessoas que deram o corpo a este combate de cidadania. Todavia, desenganem-se os opositores se pensam que exista alguma divergência de fundo sobre a regionalização entre a maior parte dos regionalistas, incluindo Onésimo Silveira. Inclusivamente, até se pode conceber que determinados líderes possam vir a concluir que afinal determinado modelo que tinham defendido já não será o mais adaptável ao nosso circunstancialismo, mudando, por isso, de opinião, mas sem abdicar da sua crença na irreversibilidade da reforma. Não devemos ser dogmáticos nem sectários, pois costuma-se dizer que só os burros é que não mudam de opinião, pelo que estaremos abertos ao debate e a eventuais futuros compromissos, desde que haja honestidade intelectual na posição das pessoas.
Na realidade, defender, a priori, uma regionalização minimalista limitada a um formato meramente administrativo, que sintetizasse a linha dos actuais detractores da reforma, tentando assim definir de antemão os contornos do futuro debate, que deveria ser alargado e participativo, constitui uma tentativa de condicioná-lo e de antecipar as conclusões do mesmo, muito ao gosto dos partidos do poder de matriz centralista e autoritária. Esta atitude não facilitará a criação de uma plataforma de entendimento consensual sobre o modelo de descentralização e regionalização mais adequado à realidade cabo-verdiana, para a elaboração de propostas concretas sobre o futuro político, administrativo e económico de Cabo Verde. Pois, embora o aval de experiências bem-sucedidas no Mundo, não existe uma doutrina uniforme sobre a descentralização, nem verdades axiomáticas sobre esta matéria, muito menos teorias dogmáticas, comprovado está que o estudo e o planeamento de uma descentralização/regionalização envolvem uma série de variáveis, que são pertença da substância complexa e multiforme do problema, e que elas são do âmbito político, geográfico, demográfico, económico e histórico-cultural (3).
Sugiro, assim, ao Onésimo que clarifique melhor o seu pensamento, porque, como se costuma dizer, à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer ser séria. Isto quer dizer apenas que pode este político estar a incorrer num risco involuntário e absolutamente desnecessário, que levará outros a murmurar: “Naquele país, falar de regionalização (política e administrativa) é quase um crime de lesa-pátria ou um acto de desobediência cívica à doutrina centralista do PAICV, partido que muitas vezes sente-se dono e polícia da consciência do país”.
Em todo o caso, e dando-lhe o benefício da dúvida, quero crer que, contrariamente ao JNM, aquilo que Onésimo propugna para Cabo Verde, em geral, e a ilha de S. Vicente, em particular, é a regionalização no seu significado conceptual mais amplo e mais completo: eleição de órgãos representativos e governativos próprios e certo grau de autonomia financeira e de decisão política. De resto, tem sido por demais evidente em todos os artigos já publicados sobre regionalização (Arsénio de Pina, Adriano Miranda Lima, António Pascoal Santos, Luiz Silva, da minha própria pessoa, e vários outros jovens autores como Aldirley Gomes) e da posição já expressa por vários políticos locais e nacionais, que o conceito envolve um carácter político e simultaneamente administrativo bem como uma autonomia que, citando Adriano Miranda Lima (1), “corresponderá à amplitude que for conferida à transferência de autoridade político-administrativa, que quanto maior é, mais efectiva torna a autonomia. Uma autonomia configura responsabilidades político-administrativas próprias no espaço jurisdicional de um poder local e circunscrita a certas áreas de governação, que excluem normalmente as que têm uma relação directa com a soberania e são da estrita dependência do governo central.”
Voltando ao princípio desta narrativa (1ª parte), vimos que a antiga administração colonial, já na sua fase final, pensou num figurino administrativo diferente para o arquipélago de Cabo Verde e chegou a indigitar um governador para o Grupo Barlavento, o que revela já na altura uma correcta percepção das consequências político-administrativas da descontinuidade territorial da colónia e da necessidade de uma resposta adequada e mais próxima dos interesses daquelas ilhas. O companheiro e conterrâneo Adriano Miranda Lima, que foi vizinho em Tomar do governador então digitado, Dr. Jerónimo Graça (falecido em 2011), confirma que ouviu directamente da sua boca o facto aqui referido.
É verdade que tal solução não corresponderia propriamente ao que hoje defendemos actualmente para o país – a regionalização – mas constituía certamente o primeiro lance de um olhar realista para os problemas do arquipélago. Na realidade, a iniciativa do governo do MPD nos anos 90 seguiu, em certa medida, a lógica subjacente ao projecto da administração colonial, e se não fosse abortada por questões de ordem ideológica, estaríamos hoje a desfrutar em todo o arquipélago do seu impacto socioeconómico e quiçá político. Todavia, na presente conjuntura, essa regionalização minimalista já está fora do contexto, ultrapassada no seu “timing”, na medida em que como referi precedentemente, a sua concretização actual só serviria para matar a ideia e o conteúdo da regionalização, servindo exclusivamente os interesses de uma oligarquia política e económica bem instalada no conforto do poder, que tudo fará para abafar qualquer “radiografia”do país, debate e tratamento dos problemas candentes da sociedade cabo-verdiana contemporânea. Ontem como hoje, a solução dos problemas de Cabo Verde requer o equilíbrio entre o factor geoeconómico e o político “tout court”, o primado da racionalidade sobre a obtusidade mental. Nenhuma decisão sobre a regionalização deverá ser tomada sem uma ampla discussão envolvendo os principais actores e a sociedade civil. Tão pouco será possível introduzir esta reforma e as que vêm anexadas, sem as preceder de um debate sobre o acervo de mudanças profundas e necessárias que o país reclama. Pois a regionalização, mormente a minimalista, sendo parte da solução, não será de certeza a panaceia para os muitos problemas graves e crónicos que já assolam o país. (FIM)
PS: A experiência de regionalização em curso em Marrocos (5), da iniciativa e impulsionada pelo próprio rei (que não pode ser acusado de querer dividir o seu país), e já em fase avançada de implementação, prova ser uma reforma natural e que merece a nossa atenção, desmonta as inverdades e fantasmas que, infelizmente, alguns querem construir em torno da problemática. Esta reforma é já prova de maturidade política de um país como o Marrocos.