Status Kuo

PorRosário da Luz,13 mai 2013 0:22

Passado menos de um ano sobre as autárquicas, encontramo-nos na expetativa de duas eleições partidárias e de uma remodelação governamental. O nosso cenário político está, novamente, sob o signo da mudança: em busca de “refundação”, de “renovação”, de “liderança”. Há cerca de 25 anos que as forças políticas e os poderes executivos anunciam-nos freneticamente cenários utópicos para a transformação da realidade política e económica Cabo-verdiana: “Mais liberdade, mais democracia, mais transparência, mais emprego, mais investimento, mais educação, mais justiça social. Mais Cabo Verde, mas com um Estado mais magro.” Há mais de duas décadas que o povo Cabo-verdiano compra este discurso da mudansa e atribui aos seus representantes e executivos mandatos formais para a transformação da sociedade.

De facto, neste período, muita coisa mudou. Sofremos mudanças cataclísmicas no foro social; mas que foram todas de ordem consequencial, resultantes do processo histórico e da globalização da sociedade. A nossa economia sofreu reformas radicais; mas que foram todas impostas e/ou financiadas por doadores internacionais. A chave para o sucesso de qualquer sociedade democrática reside em processos transformativos deliberados internamente, e decididos na arena política, em todas suas as vertentes – partidária, representativa, governativa e cívica. São estas as mudanças que elegemos; o seu objetivo é a produção das realidades que ambicionamos e a gestão eficaz das conjunturas que nos são impostas. Em 25 anos de mudansa discursiva, qual tem sido a nossa verdadeira atitude perante a transformação da sociedade?  

Em 91, numa ordem mundial remodelada pelo fim da guerra fria, as primeiras eleições pluripartidárias em Cabo Verde foram decididas sobre uma plataforma essencialmente política: pela possibilidade de alterar o sistema repressivo vigente. Como é que lá chegamos? As forças envolvidas no processo reclamam alternadamente a autoria da liberalização política e a paternidade da democracia Cabo-verdiana. O facto é que a abertura política foi efetivada por um Estado falido, dono de uma economia sem quaisquer possibilidades de autofinanciamento, que reconheceu claramente que os seus esquemas tradicionais de ajuda externa não resistiriam á nova configuração internacional. A democratização foi instrumentalizada por um Estado obrigado a trabalhar com novos canais de financiamento, que lhe impunham o risco do embate eleitoral como única alternativa á implosão. A sociedade alinhou-se em massa com o processo de liberalização, mas não o produziu; não foi através da ação ou pressão interna que acedemos á transformação política, foi na sequência de eventos que tiveram lugar do outro lado do planeta. Por essa razão, se a democracia Cabo-verdiana tem um pai, o seu nome é Gorbachev. Somos, como tantas, uma Dimokrasia Mikhailovna.

Tudo bem. Independentemente do processo, dispomos do hardware constitucional necessário para a livre organização da sociedade e da economia. Foram removidas todas as barreiras á organização política e á atividade cívica; foram rigorosamente respeitados os calendários eleitorais, que constituem os fóruns de avaliação dos poderes eleitos; mas nada disso resultou numa dinâmica política, cívica ou cultural capaz de sustentar o necessário continuum renovação. O cenário partidário sedimentou-se num modelo bipolar, com uma tendência clara para eliminar o diferencial discursivo entre as partes. E apesar da dessatisfação com as duas correntes principais, manifesta em diversos embates, nunca uma terceira conseguiu convencer um segmento significativo do eleitorado nacional a desgarrar-se das forças políticas enraizadas. Dentro das estruturas partidárias, a competição pela liderança parece ser apanágio da oposição, onde não há poder efetivo para partilhar; mesmo assim, o caracter das candidaturas é invariavelmente faccionário, evitando cuidadosamente o pronunciamento ideológico. Entre os incumbentes, parece ser praxe evitar toda a dinâmica competitiva. O resultado generalizado deste entorpecimento político Cabo-verdiano é uma dificuldade demonstrável em produzir lideranças capazes de renovar intelectual e ideologicamente quer os seus partidos quer a sociedade.

Após mais de duas décadas de separação entre partido e estado, a Administração Pública continua a funcionar de acordo com um modelo clientelista, pernicioso pela total ausência do critério de mérito; mas ao invés de combatermos este procedimento enquanto cidadãos, pressionando os nossos representantes e punindo os desvios nos atos eleitorais, tentamos instrumentalizá-lo através de estratégias duvidosas de inserção individual. Quanto ao nosso comportamento nos campos cívico e cultural, desde 90 que o grande risco para o pensador independente, ativista cívico ou artista contra corrente é a perda de uma boca no aparelho do Estado. Aparentemente, temos mais medo de perder essa boca do que os aspirantes sérios á mudança têm de perder a própria vida. 

Apesar das eleições de 91 terem sido decididas por um programa de transformação essencialmente político e cívico, o novo projeto governativo dependia fundamentalmente da alteração da plataforma económica para um modelo liberal, com o crescimento assente sobre o investimento privado. Contudo, os níveis de endividamento do Estado ao longo da década de 90, o crescimento da sua folha de salários, a persistência do sistema político ocupacional e a relutância generalizada na implementação efetiva do programa de privatização da economia atestam que a governação continuou a reproduzir os vícios que foram formalmente abjurados pelo novo modelo organizativo.

Qual é o porquê desta resistência á democratização económica, a uma reforma que foi deliberada e devidamente sufragada? Do lado do indivíduo, o esforço conceptual e psicológico para abrir caminho numa economia concorrencial e anónima representa uma rotura brutal. Fomos historicamente acossados pela incerteza e ainda hoje fugimos do risco como de uma casa em chamas; a perspetiva de garantir a sobrevivência longe das redes de correligionários, amigos, parentes e naturais da mesma ribeira constitui um desafio que a nossa insegurança não nos permite aceitar. Do lado do Estado, 5 séculos de administração colonial, de crise económica sistémica, e mais 15 anos de um regime autoritário não poderiam deixar de caracterizar a conceção Cabo-verdiana do poder político. O terreno é perfeito para o estabelecimento de uma dialéctica de insegurança e controle entre Estado e Cidadão. Apesar de todo o seu engajamento discursivo com a transformação – o Estado democrático em Cabo Verde é convidado a reter uma configuração paternalista. Não insiste num novo modelo produtivo porque sabe que as economias de mercado convivem mal com um status quo politicamente autoritário. Mas o discurso reformista garante-lhe o financiamento necessário para continuar a crescer e a acomodar as ambições limitadas dos cidadãos. Apesar do nosso fetiche discursivo e eleitoral com a mudança, e das nossas obrigações internacionais de a simular, é demonstrável que todos os processos de transformação nascem truncados e que o capital empregue na sua implementação é, na realidade, consumo do Estado e dos seus subsidiados.

O resultado previsível. Começamos a pensar timidamente no turismo nos anos 90, e as conveniências discursivas fizeram com que, em inícios dos anos 2000, ele fosse designado “o nosso petróleo”. De momento, enfrentamos uma muito falada crise de procura externa mas esta, aparentemente, não atingiu a indústria turístico-hoteleira.cv, que está em franca expansão. No mês passado o INE publicou os dados relativos ao setor em 2012: 12.3% mais turistas, 17.9% mais dormidas, mais gente a gastar mais dinheiro em Cabo Verde. Contudo, esta prova da robustez do nosso destino não tem qualquer impacto na transformação da economia: quinze anos volvidos sobre o início da exploração do setor que iria transformar a sociedade, verificamos que este não é capaz de empregar nem o capital nem o trabalho Cabo-verdiano; verificamos que as nossas competências não estão á altura das exigências de um mercado internacional; e que o turismo não gera recursos suficientes para sustentar qualquer esquema de investimento público ou redistribuição económica.

Lá se foram “mais investimento, emprego, educação e justiça social”. Por culpa de quem? De que lado está o ónus desta resistência á transformação? Do lado do desempregado? Do idoso sem pensão? Do estudante sub-instruído? Do empresário frustrado? All of the above: o ónus está do lado do eleitorado e da sua insegurança sistémica, da sua dependência passiva do poder político, da sua ignorância completa dos seus próprios interesses. Independentemente dos impulsos do Estado e da Administração, numa democracia, o ónus da inoperância governativa reside essencialmente com o cidadão. Se a nossa atitude perante a mudansa continuar a situar-se entre a passividade e a resistência, a conclusão é que estamos a curtir o nosso status kuo e queremos ficar exatamente onde estamos. Para dentro de 15 anos, num quadro de desgaste político e económico total, fazermos um balanço semelhante dos nossos clusters, o petróleo de 2013.

 

 

 

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Autoria:Rosário da Luz,13 mai 2013 0:22

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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