1 - Repesco Manuel Ferreira, a propósito de Gilberto Freyre, sociólogo brasileiro de «referência e audiência internacional», autor do «Casa Grande e Senzala», passando por Cabo Verde,quando fez, em dois livros, afirmações “controversas”; tais afirmações feitas com base em informações pouco “sérias” suscitaram reacções de Ferreira,transcrevo:«ora informações como estas, perdoa-me Gilberto Freyre, não têm o mínimo de seriedade». A respeito das análises feitas pelo mesmo sociólogo, Baltasar Lopes disse: «para quê não falar claro? O Messias desiludiu-nos»; mais adiante retoma: «acode-me ao bico da pena o adjetivo absurdo», e argumenta com a probidade de sempre, trazendo a lume a verdade que esteve sempre ali, apesar de passar ao lado da visão do ilustre e apressado sociólogo, com relação a Cabo Verde.
Desta feita vem o sociólogo cabo-verdiano, à laia de “neosofista”, autor do livro «Música migrante em Lisboa…», com tese de doutoramento em música, com um artigo onde, em grafia garrafal, escreve, afirmando, tout court (e tentando, como pôde, justificar) – «mazurca, género musical cabo-verdiano».
2 - Para enquadrar o leitor à suposta motivação e razão do artigo trazido no punho do articulista (A), inserto no jornal «Expresso das Ilhas» nº 623, de 6 de Novembro de 2013, intitulado «na rota dinâmica do sincretismo: a mazurca, género musical cabo-verdiano», segue a seguinte informação: o artigo foi redigido na sequência de uma chamada de atenção feita por mim ao (A), a 4 de Agosto 2013, sobre um outro artigo que publicara anteriormente, no nº 610 de 7-8-13, do mesmo jornal, título - «gostos musicais», onde afirma que mazurca é género musical cabo-verdiano.
Para se ter ideia da metamorfose de opinião, num curto espaço de tempo, o (A) responde-me ao reparo feito, a 7 de Agosto 2013, com a seguinte frase: «Tens toda a razão. A mazurka não é um género musical cabo-verdiano e aparece entre parêntesis, por embalagem minha». No entanto, no dia seguinte, numa viragem de 280 graus, o mesmo (A), ilumina-se, sabe-se lá como, e responde da seguinte forma: «Numa reacção minha à queima-roupa à tua chamada de atenção de ontem e, agora, reflectindo com mais serenidade, a mazurka, sim, é um género musical cabo-verdianoembora de origem estrangeira, à semelhança de outros géneros. A sociedade cabo-verdiana apropriou-se dela, moldou-a, e tornou-a num género musical nacional, não obstante a sua procedência estrangeira, através de um processo sincrético. Não tens razão. Vou manter o texto tal como está».
Ora bem, fica cristalina a insegurança do Doutor, ainda nesta altura do campeonato.
3 - Julgo que para o seu grau académico e “responsabilidade” social na matéria, aguarda-se que não basta dizer, conclusivamente, que existem «variantes híbridas», o (A) precisa urgentemente de provar, com a ajuda de um Musicólogo, é claro (as tais «canadianas do saber») e citar fontes, para que tecnicamente fique claro, por A+B, a nós leigos, que existem de facto essas «variantes», “derivações” a partir do género-mãe e estrangeiro (sinceramente, eu acredito que sim, existem). No entanto, a existência dessas «variantes», do «hibridismo», bem como a argumentação aludindo o «sincretismo» e outras varinhas utilizadas pelo (A), como a «disseminação», «ressignificação», «reinterpretações», que conhecemos e aceitamos,em nada abonam a favorda sua acepção - «mazurca género musical cabo-verdiano», qual mágico sacando da cartola o inocente coelho, para formular a defesa da sua indefensável tese.
Caso não haja, deveria haver, alguma legislação do direito internacional que impedisse que doravante determinados seres iluminados por uma sofística mais ou menos elaborada no encosto ao maquiavelismo, num jogo de fintas e truques, possam “trespassar pátrias autorais” de uma nação para outra, repescando o ilusionismo de algumas referências, consultas de livrinhos e wikipédias. Acertando meus ponteiros pela diapasão de Merleau Ponty- «o verdadeiro cogito não substitui o próprio mundo pela significação mundo», ou seja, a verdade que se consubstancia, aqui, na mazurca como “um universo” simboliza um mundo com sua pertença inalienável do ponto de vista legal e da facticidade – propriedade de outra nação, antes de qualquer malabarismo teórico. Urge estudar e tipificar a(s) “variante(s)” desse produto, para que possamos assumir, com propriedade, que esta(s) variante(s), e apenas esta(s), nos pertence(m) e, depois, renomeá-la(s), à semelhança, por exemplo, docolá-zouk, “fusão CV” indiscutivelmente (zouk, mazurca, hip-hop, reggae, valsa etc. etc. não são géneros cabo-verdianos).
4 - Para que o leitor veja, claramente visto, a grande diferença que o (A) não aceita, ou não quer enxergar, segue um exemplo claro: Zouk, sem fazer aqui nenhum juízo de valor ou gosto, é o género musical estrangeiro mais «reinterpretado», mais ouvido, mais dançado actualmente em Cabo Verde e na sua diáspora; existem, neste momento, derivados (e fusões) desse género estrangeiro que, com toda a propriedade, quer se queira ou não, pertencem à imaginação fértil do cabo-verdiano; trazemos como exemplo o cabo-zouk, Zouk-love, colá-zouk etc. Mas isto nunca há-de servir de argumento para sacarmos (saqueando) à pátria do Zouk o género.Zouk não é, e nunca será,género musical cabo-verdiano, assim como mazurca também não; o que não quer dizer que tais géneros não façam parte do nosso património musical através das suas “derivações”e/ou fusões– aliás, outra posição defendida, com maior honestidade, no seu livro «Música Migrante em Lisboa…» (ver pag. 71).
Vou dar um outro exemplo, agora viajandona minha área do saber, e o “Messias” (A) que é professor universitário sabe, melhor do que eu, que a melhor forma de ensinar é dar bons exemplos; aqui vai: a “réplica” da torre de Belém, em Mindelo, faz parte do património arquitectónico cabo-verdiano, no entanto, a «arquitectura manuelina» (estilo português – equiparado aqui ao género na música mazurca) que serviu de inspiração e técnica à criação do edifício, é portuguesa; estilo manuelino e género mazurca não são “trespassáveis” mesmo que todos os deuses da desonestidade reúnam à volta da fogueira.
5 - Se aceitarmos com passividade, sem questionamento, a afirmação do (A), amanhãalguém irá escrever que «Zouk», tout court, é género musical cabo-verdiano, depois «hip-hop», mais tarde «reggae» e assim por diante (esbatendo todas as fronteiras e eliminando de vez as “pátrias autorais”- do tipo: nada é de ninguém), usando esse expediente de secretaria, protegido pela sua caríssima etnomusicologia e argumentos que branqueiam inverdades e deturpam factos. Se o título do seu artigo fosse (por exemplo, ao invés daquele) este - Mazurca, as “derivações CV” do género estrangeiro, teríamos um bom ponto de partida para análise, mas, infelizmente, como está, deita por terra todo o cansativoesforço que faz para defender o indefensável. «Desterritorializada» e «expatriada» a mazurca? Sinceramente (para já, isto não é discutível); o (A) quer com isso dizer que se acaso ele for «expatriado» de CV ou «desterritorializado», na sequência dessa afirmação, a sua naturalidade poderia ser assumidapor outra nação? (isso nem com ajuda de Deus, e muito menos dos sofistas)! Acredito que é isto que o (A) apelida de «visão purista, redutora, estreita e assente no senso comum»; entretanto, ficamos por saber, nós leigos, como apelida a inverdade… Onde pára a legislação que protege as nações da desonestidade intelectual? Eugénio Tavares já dizia: «verdade acima de tudo».
A propósito de a mazurca não ser mais dançada na Polónia, uma das justificações apresentadas pelo (A) para a suposta «expatriação» e «desterritorialização» (e consequentemente a «reterritorialização»), meu colega do escritório, aqui na Praia, relata-me que em 2009, quando, ao abrigo do programa «Erasmus», completava a licenciatura na Polónia (pátria da mazurca), numa atividade cultural, cidade Lublin, presenciou um grupo de polacos a dançar a mazurca em praticamente tudo semelhante à forma como os seus patrícios da ilha cabo-verdiana de Santo Antão dançam tal género, a ponto de confidenciar para o seu amigo ao lado: «mas isto é uma dança da minha terra!».
Fica mais uma vez a sensação de que o nosso Doutor baseou sua afirmação em fantasias e suposições.
6 - Falar do genuíno ou não, pouco interessa, nada está isolado no mundo, naturalmente. Por eu estar perfeitamente de acordo, fica aqui um pensamento de Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo, no livro «A morna na literatura cabo-verdiana», digno de realce (e válido para outras criações humanas): «(…) Morna é na sua dimensão humana, na sua essência e índole, na sua formação, uma música simplesmente cabo-verdiana. (…) Muito se tem preocupado com a sua origem, as suas raízes musicais. (…) Claro que esse é um falso problema porque a cultura desenvolvida pelos cabo-verdianos estaria sempre em sobressaltos todas as vezes que se quisesse determinar a origem de todas as manifestações aqui realizadas. (…) Especular quanto à origem é produto daquilo a que se chamaria de síndroma de grandeza. Ela é pois produto destas ilhas atlânticas e como parte de um todo universal terá aspectos desta ou daquela cultura que faz parte desse todo». Mais exemplos, o cubismo (estilo pictórico de maior relevância universal) de Pablo Picasso, para além das influências da pintura do Cézanne,terá observado, com atenção, alguma arte africana; acriação artística, não é fruto de geração espontânea quando se fala de influências, referências (conhecidas ou não). Mas o criador (indivíduo ou nação) não perde, por isso, a autoria da sua obra, por mais eclética ou influenciada que seja. Que dizer do Jazz? Passou a ser um género «francês» só porque é muito tocado, recriado até, em França?
Não sou nem sociólogo, nem musicólogo e muito menos músico, mas para questionar um “Messias” basta ser cidadão atento e honesto.
P.S. Dedico este meu modesto raciocínio a um dos últimos sobreviventes da incorrupção do pensamento cabo-verdiano – Paulino Vieira (antes fora Eugénio Tavares, aqui, postumamente, saudado). Alea jacta est…