Justiça, demagogia e “solvabilidade científica”

PorExpresso das Ilhas,7 dez 2013 0:02

O ISCJS, com pompa e circunstância, comemorou os 10 anos do Código Penal de Cabo Verde e, logo a seguir, soltaram-se os clarins da demagogia. Demagogia mansa e balofa.

 

O inevitável Ministro da Justiça, confiante e sereno, fala, aliás, na introdução de “novos institutos” (quais?!), “tipos de pena” e “molduras penais”, deixando no ar, com aquele jeito de burocrata consumado, a possibilidade de um “novo paradigma da justiça penal” (sic) em Cabo Verde!

O lero-lero e a falácia voltaram, como as pombinhas na velha catedral de Dijon.

Apesar de tudo, a prosápia, debitada em horário nobre do noticiário televisivo (ver http://www.rtc.cv/index.php?paginas=45&id_cod=29254), é vazia e inconsequente. Abusiva. Estupidificante até.

Ou o dr. José Carlos não sabe o que é “paradigma”, ou então, confiante na desatenção alheia, fala de cor. Não lhe fica bem, em todo o caso.

O actual Código Penal, que veio substituir o de 1886 (várias vezes revisto, saliente-se), é um diploma normativo moderno, coerente, de grande qualidade técnica, em sintonia com as regras e os princípios da Constituição democrática de 1992. É este o grande paradigma. Não há outro.

É o Código que realça, após tantos anos de violações gritantes, transpersonalismos impiedosos, salazarismos e autocracias marxistas, a fundante e fundamentante dignidade da pessoa humana, “o valor decisivo do nosso tempo” (A. Castanheira Neves), alicerce indiscutível do Estado de direito e da República bem ordenada, enquanto Sociedade Aberta e civilizada.

É este o cerne da Justiça jurídica e política, da “fairness”, lembrando ainda John Rawls. Pois se a Veritas é a eterna bússola do verdadeiro cientista, a Justiça é “a virtude primeira das instituições sociais”.     

É isso que algumas almas, saudosas do Ancien Régime, não querem admitir. É isso que perturba, 365 dias por ano!, as viúvas do totalitarismo.

E mais. Ao contrário de alguma conversa ansiosa que anda por aí, catastrófica quão infundamentada, o mundo não mudou para pior.

O mundo, hoje, é de longe mais seguro e pacífico do que nos séculos anteriores, perpassados pela barbárie, vingança desregrada e morticínios sem fim.

Steven Pinker, da universidade de Harvard, publicou um estudo monumental a este respeito (The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined, Penguin Books, 2012).

A grande diferença foi trazida, no dizer deste especialista, pelo advento do governo justo e racional, cujo arquétipo começa a gizar-se precisamente no Renascimento e no séc. XVII. Ora, sem Lei e Liberdade não pode haver, definitivamente, paz duradoura e efectiva. Esta é a grande verdade histórica. 

Paulatinamente, as sociedades foram percebendo que a instintiva “lei do talião”, com o seu fundo teológico e de expiação da culpa, nada resolve. Que a punição, também ela, deve ser racional. Legal. Justa. Servindo, diga-se, fins de reintegração e de prevenção geral (= reafirmação contrafáctica do valor-vigência da norma violada).

Um dos ícones deste novo pensamento, verdadeiramente moderno e civilizado, é o marquês de Beccaria, humanista de excepcional envergadura.

Em 1766, publicou um livro brilhante, “Dei delitti e delle pene” (Dos delitos e das penas), que devia ser de leitura obrigatória para todos os legisladores e políticos com responsabilidade governativa.

O livro é um hino à liberdade e à dignidade humana, tendo Beccaria, antes de Kant ou Stuart Mill, estabelecido os alicerces da Ilustração e da correcta relação entre o cidadão e o Estado. O direito penal não é, nem pode ser, a varinha mágica que resolve todos os problemas sociais. É apenas um meio, e um meio subsidiário, de preservação do bem comum e da segurança pública.

Ao Estado cabe, pois, garantir “…a máxima felicidade repartida pelo maior número”. A Pessoa é o prius constitutivo do ordenamento jurídico, seja no plano ontológico, seja no plano axiológico.

Beccaria é claro e profético: “…não existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em alguns casos o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa”. É um perene aviso à navegação. Inspirador. Cintilante e actualíssimo! E um poderoso desafio, convenhamos, aos déspotas de mil rostos, actuais ou em gestação, daqui ou d’ além-mar.         

Contra o apelo irracional e frenético pelo aumento das penas, Beccaria recorda-nos um facto elementar: “Um dos maiores freios do delito não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade, e por consequência a vigilância dos magistrados, e a severidade de um juiz inexorável que, para ser uma virtude útil, deve ser acompanhada de uma suave legislação. A certeza de um castigo, se bem que moderado, causará sempre uma maior impressão do que o temor de um outro mais terrível, unido com a esperança da impunidade”.

Num meio como o nosso, onde pulula, qual cogumelo maligno, a impunidade, sobretudo a do “colarinho branco”, a advertência do Mestre italiano ganha uma especial e acrescida ressonância.

De que vale ter penas elevadíssimas se o Procurador-Geral da República, o estranho dr. Júlio Martins, ante o descaminho e as vilanias dos homens do poder, se atemoriza e, gentilmente, no seu peculiaríssimo modo-de-ser, tudo…“mete na gaveta”?! Enfim: forte com os fracos e fraco com os fortes.

É inútil rever o código nestas circunstâncias.

O problema não está nas leis, está nos homens. De que vale ter penas elevadíssimas se a nossa Polícia, por ausência de meios ou de sofisticação, não consegue descobrir os crimes e/ou identificar os criminosos? Não adianta.

As penas cruéis e infamantes, descontada a excitação da ralé, nada resolvem. Ouçamos Beccaria de novo: “À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, as almas humanas – que, tal como os líquidos, se colocam sempre ao nível dos objectos que os rodeiam – endurecem, e a força sempre viva das paixões faz com que, passados cem anos de cruéis suplícios, a roda apavore tanto quanto antes a prisão…Tudo o que é demais é, portanto, supérfluo, e por isso tirânico”.

A pena criminal tem de ser justa, razoável, necessária.

Qualquer reforma penal tem de ter, insista-se, “solvabilidade científica” (M. Costa Andrade) e o devido enquadramento dogmático, numa matéria sensível em que as posições devem ser rigorosamente avaliadas e pesadas ao pormenor. Com estudos, dados empíricos, argumentos, ratio iuris. Numa discussão pública, leal e honesta, sem sofismas ou corporativismos injustificados. Não há lugar para exercícios levianos.    

Aliás, Beccaria, numa passagem esquecida, acaba por tocar num ponto decisivo. A crueldade das penas, pela própria natureza das coisas, produz consequências funestas. É que os crimes são muitos e as penas variam consoante a respectiva gravidade. O catálogo é extenso.

Ora, não é fácil, a partir de um certo ponto, manter a proporção essencial entre o delito e a pena. A imaginação é finita, assim como a sensibilidade humana. Daí que: “Uma vez chegados a este ponto extremo, não se encontraria para os delitos mais perigosos e mais atrozes pena mais pesada correspondente, como seria necessário para os prevenir”. Com esta frase, e esta clarividência assustadora, deita-se por terra a demagogia larvar e a apologia de um como que “direito penal do inimigo”!

O livro, repita-se, é de 1766. Século XVIII.

Em 2013, os nossos luminares oficiais ainda não o descobriram, pelos vistos…

 

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Autoria:Expresso das Ilhas,7 dez 2013 0:02

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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