“Vergonha e xixi na igreja!” diziam os meus mais velhos para relativizar a gravidade de um embaraço. A excecionalidade de tal ocorrência era evidente, porque urinar na vizinhança de solo sacro representava – para qualquer indivíduo minimamente socializado – um ato que só poderia ter origem numa grave patologia física ou mental. Cidade da Praia, 2013.cv. Moro mesmo em frente ao centro paroquial de Nossa Senhora do Socorro, na Achada de Sto. António, Sul da ilha mais Católica do meu arquipélago; e sou testemunha diária de que, nos dias que correm, é perfeitamente normal não ter pejo em urinar mesmo em frente á porta aberta do salão, durante a Eucaristia. Custa acreditar que a multidão de cavalheiros que se alivia durante missas, batizados e casamentos – contra a parede da residência das Irmãs – tem a bexiga tão frouxa que não aguenta sequer dobrar a esquina.
Praia 2013. Os verdadeiros reis do impulso na cidade são os taxistas; e é com uma infantilidade petulante que estes bullies da rodovia travam as suas viaturas no meio da estrada para mictar mesmo ao lado, completamente indiferentes ao tráfico diurno de respeitáveis burguesas. E o que lhes diz a classe média.cv, pilar da República, possuidora de licenciaturas, cargos de responsabilidade e enormes viaturas? Será que fica devidamente chocada com as afrontas ao seu pudor? Será que exige das autoridades espaços física e psicologicamente seguros para a circulação dos seus rebentos?
Infelizmente não; porque, infelizmente, as elites Praienses adoram imitar taxistas! Querem também elas sentir powa quando usam a rodovia; por isso travam nas rotundas exatamente como os profissas, para atender o telemóvel, cumprimentar um amigo, dar boleia a uma fulana, ou mictar se for preciso. Entretanto, jipes com vidraças fumadas – que deixam entrever os penteados e as manicuras das suas condutoras – galgam passeios e passadeiras escolares para recolher com maior conforto os filhos das donas, quase atropelando os filhos dos outros. Quanto aos moradores das zonas VIP da Kapital, esses penduram sacos de supermercado a abarrotar de lixo nas grades e nas árvores bem em frente ás suas vivendas; os cães não tardam a aparecer para investigar o odoroso pecúlio, e acabam por arrastar carne podre, fraldas descartáveis e pensos higiénicos em decomposição pelas portas de toda a gente. Mas a empregada tinha ido fazer mandadu quando veio o carro municipal, ou simplesmente não lhe apeteceu descer as escadas. Os patrões, evidentemente, não estavam disponíveis, nem para tratar dos seus resíduos nem para socializar a funcionária. E depois, pronto, olha, deu-lhes vontade de pendurar o lixo na árvore e acabou-se. Os vizinhos armados em carapaus que se danem.
Segundo a teoria freudiana, é entre os doze meses e os três anos de idade – quando nos tiram as fraldas e nos mandam usar o penico – que aprendemos a trocar o prazer da gratificação imediata pelas vantagens da integração social. No estádio anal do desenvolvimento infantil, o foco da experiência erótica é o controlo do esfíncter; mas pela primeira vez na vida da criança, um conjunto de constrangimentos externos – exigências m/paternas, a necessidade de adquirir hábitos de higiene, o desejo de agradar os progenitores, ou o medo de ser punido – limitam ou retardam a satisfação dos seus impulsos internos. É aqui que a realidade impõe-se ao prazer, e as crianças aprendem que não podem aliviar-se onde e quando querem. Muito mais do que controlar o esfíncter, neste estágio de desenvolvimento o indivíduo aprende a controlar genericamente os seus impulsos, e realiza a necessidade de adequar o seu comportamento às exigências da comunidade. Segundo a teoria clássica, é aqui que configuramos a nossa relação com o poder, com a autoridade e com os imperativos da socialização.
Na Praia de 2013 vivemos uma conjuntura inédita: adultos perfeitamente integrados no mainstream social permitem-se a gratificação imediata dos seus impulsos mais estrepitosamente antissociais, com a espontaneidade de quem ainda não aprendeu a controlar o esfíncter. É verdade que o que constitui, ou não, um comportamento antissocial pode ser matéria de muita especificidade cultural. Num determinado contexto, um indivíduo pode cheirar a catinga, comer com as mãos e coçar os fundilhos em público com toda a naturalidade; noutra paragem, o coçar da mesmíssima coceira pode pegar suuuper mal. Contudo, apesar da enorme variação no que é aceitável, entre salões de mármore e terreiros de barro, não existe nenhuma comunidade humana que permite aos seus efetivos esvaziar a bexiga e os intestinos por impulso; mais significativamente, não existe qualquer sociedade humana que não exija aos seus adultos o diferimento da gratificação dos seus impulsos – biológicos, psicológicos e sociais – para o bem do coletivo.
Então porque será que fazemos tanto pipi e cocó na via pública? Porque não nos coibimos de expor os nossos traseiros, já tão crescidos, ao olhar dos transeuntes, enquanto corremos o risco de ser atropelados por jipes descomandados? Porque será que contaminamos toda a cidade com o espetáculo, o cheiro e o barulho dos nossos impulsos? Será por ignorância individual? Por imaturidade cultural? Ou por conflito coletivo? Lamentavelmente, tudo isso junto, numa terrível dialéctica que nos viola quotidianamente o conforto, a segurança e os sentidos.
Tal como qualquer comunidade humana, a sociedade tradicional exige aos seus membros a regulação dos seus impulsos biológicos e psicossociais. Mas na aldeia, as pessoas dormem e acordam ao mesmo tempo, partilham os mesmos ciclos, as mesmas tarefas, festas e hábitos. Na cidade, há quem saia para trabalhar à meia noite, hora em que o vizinho chega a casa; e presume-se que ambos tenham o direito de limpar o quintal, ouvir música, ver TV e dormir. Na aldeia, se um indivíduo decide ir passear a sua mula ás seis da tarde, bem no centro da ribeira, não corre grandes riscos de perturbar a rotina comunitária. Na rotunda da Terra Branca não há mulas; há motores que se deslocam a altas velocidades, que pesam toneladas, e por isso não há lugar para impulsos desregrados.
Contrariamente ao campo, o espaço urbano é densa, intensa, e heterogeneamente utilizado; e requer regras precisas de operação e manutenção, tal como qualquer outro sistema de precisão. Cabo Verde é uma sociedade de raiz rural, que atravessa as primeiras décadas de uma transição cultural difícil; o processo exige-lhe a reconfiguração dos seus costumes, da sua utilização de espaços e da sua ética comunitária. No estádio anal do desenvolvimento do indivíduo, a incompetência ou omissão das autoridades de socialização comporta custos psicológicos graves para o desenvolvimento da personalidade; mas as responsabilidades no processo são facilmente identificadas e atribuíveis aos encarregados diretos da criança. E quando se trata de socializar cidadãos? Se a autoridade sobre os hábitos de evacuação de uma criança é clara, as responsabilidades sobre o processo de capacitação urbana dos indivíduos são muito mais difusas: família, escola, vizinhança, sociedade civil, governo local, administração central e mercado laboral, todos têm um papel na produção do cidadão. A nossa tragédia é que, num contexto de rotura civilizacional, a maioria destes agentes não domina as competências ou as tradições necessárias ao desempenho adequado das suas funções.
Como é óbvio. Num contexto de rotura, não é realista esperar que estruturas culturais e psicológicas tradicionais reajam produtivamente a estímulos e esquemas organizacionais desconhecidos. É expectável que a família e a vizinhança.cv simplesmente não detenham os recursos necessários á socialização de um homo urbanus; e nesse caso, é expectável que haja conflito entre os impulsos sociais da maioria e as exigências da modernidade urbana. Contudo, se admitimos que uma criança de dois anos não faz xixi no chão da sala por perfídia, podemos admitir que a cidadania.cv não faz xixi na praça por maldade expressa e articulada. O facto é que a colmatação das deficiências familiares e comunitárias exigiria ao universo Cabo-verdiano uma forte liderança cívica e política no domínio da socialização; um tipo de liderança que não estamos, evidentemente, em condições de produzir.
Nos tempos em que vergonha era xixi na igreja, a administração colonial.pt tinha poder para disciplinar sumariamente a utilização dos espaços urbanos nas suas províncias. Isto porque, tal como a autoridade m/paterna sobre a criança, o poder colonial não é eleito, existe; e arroga-se automaticamente do domínio sobre todas as dinâmicas sociais. Mas em sede de democracia soberana, a regulação dos impulsos antissociais da cidadania pode comportar gravosos custos eleitorais. O resultado é que não é fácil encontrar uma administração municipal ou um governo central que esteja verdadeiramente disposto a interferir nas soluções atávicas de evacuação e tratamento de resíduos dos seus eleitores. Muito pelo contrário: perante a insegurança cultural provocada pela recente dinâmica urbana, os poderes públicos tendem a ceder ao laissez faire mais desavergonhadamente populista, e a deixar caracterizar qualquer tentativa de disciplina ou saneamento como elitismo. E se o défice de autoridade m/paterna em determinadas fases da infância resulta em indivíduos com personalidades lixadas, sem qualquer consideração pelas normas de convivência com os seus pares, é natural que os graves défices de autoridade familiar, política e cívica evidenciados nos últimos 30 anos resultem numa Kapital com uma personalidade igualmente lixada.