O Carnaval crioulo cabo-verdiano dos Equívocos, da Diversidade, da Indústria da Cultura, da Política, da Economia, dos Emigrantes, etc. (II)

PorExpresso das Ilhas,31 mar 2014 0:00

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O Carnaval 2014 já vai longe, mas como o prometido é devido, vamos continuar o seu balanço, até porque o Carnaval continua activo nas redes sociais, com fotografias e selfies para todos os gostos.

De (des)economia de passá sábe e do nôs cu nôs a indústria da cultura e cartaz turístico

O Carnaval é a maior e mais criativa manifestação cultural cabo-verdiana. Só que ao contrário da maioria dos organizados Carnavais/cartazes turísticos do globo, no nosso caso ainda é uma economia de passá sábe, ou seja apenas para gozo pessoal e popular (nôs cu nôs), apesar do seu enorme potencial. São custos de oportunidade, dirão os economistas, dinheiro que podia ser aplicado de forma produtiva noutras actividades; os foliões defender-se-ão dizendo que nem só de pão vivem os homens e as mulheres. É possível conciliar esses dois interesses. Sem deixar de ter o seu lado lúdico, o Carnaval é cartaz turístico com fins comerciais do Velho ao Novo Mundo em cidades como Veneza, Nice, Funchal, Santa Cruz de Tenerife, para não falarmos das cidades da América Latina, Caraíbas e Sul dos Estados Unidos. Na ilha da Madeira o Carnaval da cidade do Funchal foi estrategicamente trabalhado como cartaz turístico. Resultado: as taxas de ocupação dos hotéis sobem para mais de 70%, numa altura do ano (Inverno) em que a mesma não excede normalmente os 40%. Sem complexos, os madeirenses investiram no Carnaval, mandando buscar brasileiros para lhes ensinar a tocar e sambar. Alguns dos nomes dos grupos que todos os anos fazem o Carnaval do Funchal: “Escola de Samba–Os Cariocas”, “Associação Fura Samba”, “Escola de Samba Caneca Furada” e “Turma do Funil”. Alguém falou em imitar o Brasil?!

O Carnaval do Funchal de 2014 contou com cerca de 1.400 figurantes, espalhados por 10 grupos, sob o tema “Madeira - Carnaval Brilhante”. No Mindelo desfilaram no grupo “Monte Sossego” 1.200 figurantes, 1.000 no “Vindos do Oriente”, 900 no “Cruzeiros do Norte”, 800 no “Flores do Mindelo” e 600 no “Sonhos sem Limites”. Juntando o “Samba Tropical” com 1.000 dá um total de 5.500 foliões nos chamados grupos oficiais. De acordo com informações do Vereador da Cultura da Câmara Municipal de S. Vicente, desfilaram ao todo 60 grupos (sem contar os numerosos grupos espontâneos) durante 4 dias, num total estimado de dez mil figurantes, uma performance extraordinária para uma pequena cidade de 80 mil habitantes (o Funchal tem 225 mil). Não posso deixar de imaginar o que não fariam as autoridades da Madeira se tivessem um Carnaval espontâneo destes! Infelizmente Deus dá nozes a quem não tem dentes.

A Câmara Municipal de São Vicente, o maior financiador do Carnaval com apoio do Ministério da Cultura, orçamentou 10.000 contos para este ano, tendo atribuido 1.000 contos a cada um dos 6 grupos “oficiais”; valores diferenciados foram distribuídos aos restantes grupos de acordo com o projecto apresentado. No cidade do Funchal os grupos têm uma média de 140 figurantes e recebem donativos da Secretaria Regional da Cultura que chegam aos 28 mil euros cada. Quem apostou seriamente no turismo tem receitas para financiar os seus grupos e assim atrair mais turistas. O Funchal que vive de turismo urbano tem 19.000 camas e alguns dos melhores hotéis do mundo, enquanto o Mindelo mantém apenas 5 hotéis com a qualidade que conhecemos. Como a economia é simples e bonita! Por cá na calada continuam muitas empresas que ganham imenso com este evento, mas cuja contribuição é desconhecida ou inexistente. Mas todos os comerciantes, industriais da área alimentar e empresários ligados à hotelaria e restauração são unânimes: o Mindelo tem hoje dois picos de consumo, um de Dezembro ao Carnaval e outro no Verão; no meio tempo as empresas e os empresários vivem com a corda na garganta.

Mais um exemplo: Torres Vedras é uma pequena cidade do Distrito de Lisboa, com uma população de 26.400 almas e um Carnaval centenário. Em 2013 o orçamento do Carnaval foi de 350 mil euros e as receitas na economia local de cerca de 3,5 milhões de euros. Nada mau! Este ano as cidades carnavalescas de Portugal, decretaram todas tolerância de ponto desobedecendo ao Governo da República, que isto de mexer na economia local só com decisões locais.

Falar de economia do Carnaval ou industria do Carnaval no Mindelo é na minha opinião reduzir a questão. O que importa é planificar o turismo, utilizando a indústria da cultura como eixo estratégico, uma solicitação antiga. O Carnaval deverá fazer parte de um programa anual de eventos turísticos, incluindo a Passagem de Ano, as festas juninas e os festivais de teatro e música. O Funchal faz isso com sucesso há décadas, apesar de não ter o nosso clima e exotismo tropicais.

Aqui nas vizinhas ilhas Canárias, o Carnaval de Santa Cruz de Tenerife, considerado o maior da Europa (e a festa mais brasileira de Espanha), atrai centenas de milhares de turistas; os desfiles com corso começaram apenas em 1965 (Mindelo em 1939) e logo em 1967 foi decretado como Fiesta de Interesse Turistico Nacional, passando a ser Fiesta de Interesse Turistico Internacional em 1980. A isto chamam-se competentes e atempadas medidas de política.

O grupo Samba Tropical fez este ano uma bonita homenagem à Revolução Industrial, sem a qual o Porto Grande provavelmente não teria existido. As indústrias, sejam elas quais foram, sempre foram criativas e inovadoras, condição sine qua non para a sua sobrevivência. Das oficinas e estaleiros navais das empresas inglesas Wilson & Son, Shell, Millers & Brothers ou Cory & Bros, que formaram os primeiros profissionais verdianos, é que sairam os artistas e artesãos do Carnaval mindelense há cerca de 100 anos atrás. É hora de homenagear essas empresas e os artistas anónimos que geraram. 

 

Música do Carnaval crioulo cabo-verdiano

Outro conhecido cliché tem a ver com as músicas do Carnaval do Mindelo e da Ribeira Brava, devido ao uso recente de batucadas de inspiração brasileira. Minha gente é assim em todos os Carnavais deste mundo, qual é o problema? O próprio samba nasceu da mistura de ritmos africanos com músicas europeias como a polka, são os estudiosos brasileiros que o dizem. As nossas batucadas contêm hoje os vários ritmos verdianos (como o Colá Sanjon), por obra e criação artística do impagável maestro Mike Lima e de uma legião de seguidores por todo o país. Crédito ao Ministro da Cultura que percebeu a dimensão da obra de Mike Lima e deu instruções para o maestro espalhar o seu perfume rítmico pelas ilhas. É sem dúvida uma vantagem ter um Ministro músico e artista.

As músicas do Carnaval do Mindelo já foram sambas, modinhas, marchas e agora são novos ritmos graças a compositores extraordinários como Vlademiro Ferreira (Vlú) e mais recentemente Constantino Cardoso, que marcaram uma nova fase da História do Carnaval nestas ilhas, com um repertório digno de registo pela produtividade anual. Aliás o Carnaval é o momento de maior criatividade musical deste arquipélago, por muitos festivais de música que se façam.  

No Carnaval de 2013 a minha amiga Carlita ficou surpreendida por não ter ouvido nenhuma música brasileira do tipo “Mamãe eu quero” nos bailes aqui no Mindelo, como era hábito quando ela deixou o país 23 anos atrás. É assim, o Carnaval evoluiu e hoje as músicas dos bailes são “Made in Cabo Verde”, cantadas em bom crioulo. Não devíamos estar orgulhosos?!

 

Carnaval nas ilhas crioulas cabo-verdianas

Em criança vivi na acolhedora Vila da Assomada. Não havia Carnaval e era preciso vir à cidade da Praia para ver alguns mascarados. Vi este ano na nossa televisão grupos a ensaiarem às escuras em localidades no interior de Santiago, com um empenho e alegria contagiantes. O vírus espalhou-se. O Ministério da Cultura pretende alargar a Festa do Rei Momo a todos os concelhos do país. O meu lado carnavaleso regojiza-se com mais esta massificação, embora desconfie de cultura por decreto. Em tempos de recursos ainda mais escassos, não seria mais prudente investir nos Carnavais já existentes e transformá-los em cartazes turísticos internacionais?

 

Carnaval político

Mais uma vez cumpriu-se a tradição verdiana: os políticos mantém-se alheios ao Carnaval (excepção ao Carnaval de péssimo gosto da nossa Assembleia); o Primeiro-Ministro de Cabo Verde em 12 anos de poder, nunca veio oficialmente ao Carnaval do Mindelo (veio uma vez há 2 anos em visita privada)! Estranho para alguém que estudou no Brasil, dizem uns; será porque a Câmara é de outra côr política, perguntam outros; estaremos ainda neste primitivismo político?! Ministros da Economia, que vão supostamente tutelando o mal amado turismo, nunca ninguém os viu por cá. São os Ministros da Cultura que vão salvando a honra do convento. Os eventos culturais desta terra continuam a ser presas de protagonismos políticos: quem tem agarra com unhas e dentes e os outros amuam. Não devia ser assim.

Meu saudosos irmãos ilhéus e atlânticos dos tempos da Universidade, como vocês são sortudos na ilha da Madeira: o vosso colorido Presidente do Governo Regional desfilou durante décadas de tambor na mão no Carnaval do Funchal e acredito que o homem seria capaz de desfilar no inferno se isso ajudasse a promover o Carnaval e o turismo do seu arquipélago! Os grandes líderes são assim, dão o exemplo.

Do outro lado da África, os crioulos das ilhas Seychelles inventaram um Carnaval dos Carnavais, por motivos turísticos: mandam todos os anos buscar os representantes dos maiores Carnavais do mundo para mostrar aos turistas e irem aprendendo. Que crioulos tão pragmáticos e business oriented! Fizeram o seu trabalho de casa e constataram o óbvio: que no competitivo mundo de hoje ter belas praias, paisagens luxuriantes e um clima tropical já não chegam, que o pessoal quer também turismo urbano e cultural. Pergunte-se aos líderes políticos de todos os Pequenos Países Insulares (que deixam Cabo Verde a léguas), e que se desenvolveram graças ao turismo e onde o Carnaval é cartaz turístico internacional.

 

Carnaval popular – o fenómeno Mandingas

Uma vez que geneticamente a mistura de branco e negro não dá negro (só na ideologia), os crioulos de Cabo Verde têm a necessidade de se pintarem de preto para poderem parecer negros. É assim com os Mandingas do Carnaval do Mindelo, uma das mais singulares e diferenciadoras facetas do Carnaval mindelense, que todos os anos anunciam o Carnaval com um mês de antecedência, saindo à rua aos domingos. O que é recente é a impressionante quantidade de gente (milhares), sobretudo jovens (e turistas), que acompanham estes desfiles, a dançar e cantar num ritmo e energia contagiantes. Um fenómeno realmente único e que vem aumentando de ano para ano, ao ponto da Câmara Municipal de São Vicente ter eleito este Carnaval como o Ano dos Mandingas, uma merecida homenagem. Ver os Mandingas é um espectáculo, e cito duas amigas inglesas que vieram passar o Carnaval connosco: it’s scaring, but beautiful! Recomenda-se auriculares aos mais sensíveis, pois os dizeres são no mínimo sexualmente incorrectos. Foram injustamente acusados de criar distúrbios, quando o problema está é na falta de acompanhamento policial. Não se pode pretender que tudo corra bem quando milhares de jovens saem em grupo a dançar numa festa cujo mote é perverter as regras. Prova disso foi o impressionante desfile do enterro de Carnaval, com milhares de pessoas a percorrerem a cidade e ir levar ao caixão ao oceano Atlântico na Avenida Marginal: tudo correu bem porque a polícia esteve presente. A cidade do Mindelo tem que estar preparada para todos os domingos receber os desfiles de Mandingas, porque se trata de um produto turístico de cariz popular muito apreciado pelos turistas e que prolonga o cartaz durante um mês ou mais, sem quase nenhum custo para as autoridades e empresas do ramo. Regulação precisa-se. Ao invés de enxotar os Mandigas para a periferia, com em tempos de má memória, temos é que encontrar formas de arranjar tintas apropriadas para que os grupos organizados se possam pintar sem riscos para a saúde.

 

O papel dos emigrantes e a “economia étnica”

Enquanto não temos um mercado turístico, a nossa diáspora mais uma vez diz presente e assume de peito aberto o seu papel no desenvolvimento do país, enchendo os voos e trazendo alegria e divisas. Foram recebidos num evento organizado pela renovada Direcção do Grupo Samba Tropical: Mindelo no seu melhor, que teve duas bonitas rianhas vindas da diáspora. Em São Nicolau uma rainha vinda da emigração foi recebida em apoteose no aeroporto. Vai um grande abraço à nossa diáspora. Continuem a vir e a cumprir o vosso desígnio de ajudar esta terra de todos nós.

 

E tudo não acabou na quarta-feira

O Carnaval 2014 deixou imensas saudades, sendo já considerado o melhor de sempre. Nunca houve tanta gente a desfilar, o que pode significar maior inclusão social. Mas nem tudo são rosas e passada a folia é hora de encarar a realidade.

A ilha de São Vicente, outrora um oásis de emprego, vê o desemprego aumentar todos os anos. Tornou-se desde 2008 na ilha com maior taxa de desemprego, fruto das políticas recentes. Um autêntico caso de estudo (pela negativa), se tivermos em conta a História e o facto de ser a ilha mais bem infra-estruturada do país! A nação cabo-verdiana não tem razões para se orgulhar disso.

A ilha de S. Nicolau perde população todos os anos. Os jovens da ilha não querem lá ficar e nenhum jovem de outra ilha quer ir para lá. A nação verdiana não tem razões para estar orgulhosa deste estado de coisas.

Os habitantes das duas ilhas usaram o Carnaval para mostrar ao país que o problema não está na falta de atitude nem de organização. Cabo Verde viu, ouviu e tomou nota. Agora é hora de apertar o cinto até o Verão, altura em que mais emigrantes, estudantes e alguns turistas trarão mais um balão de oxigénio, num permanente adiar do problema, cuja única solução é trazer para as ilhas o que elas não têm: mercado, que a chata da economia capitalista não nos larga!

Uma palavra de apreço à nossa comunicação social. Nunca se viu tamanha cobertura ao Carnaval do Mindelo, com direito a transmissão internacional. Os cínicos dirão que terá havido instruções superiores para distrair a malta dos problemas. Ou terá sido trabalho abnegado dos nossos profissionais, que no entanto teve uma nódoa no fim: no debate televisivo sobre o “Impacto Económico do Carnaval” foram convidados um professor e organizador de grupos de Carnaval, um sociólogo(!) e um economista. Nenhum comerciante, nenhum representante da Câmara de Comércio, nenhum empresário do turismo! Come on! Vamos continuar a ser um país surrealista e economicamente incorrecto?! It’s the economy, my dear friend!

 

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Autoria:Expresso das Ilhas,31 mar 2014 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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