Tonton Macoute

PorRosário da Luz,5 abr 2014 0:01

3

Tonton MacouteTitio Sacola – é um personagem do folclore Haitiano, um espantalho de carne e osso que castiga os meninos desobedientes, metendo-os num saco e desaparecendo com eles para longe. Em 1959, o Presidente do Haiti, François “Papa Doc” Duvalier, criou uma milícia pessoal com o objetivo de neutralizar o poder arreigado do exército e da polícia. A partir de então, quem ousava pronunciar-se contra Duvalier desaparecia á noite e aparecia assassinado; por essa razão, em referência á lenda, os membros da tropa de “Papa Doc” passaram a ser denominados de Tontons Macoutes. Os Tontons eram responsáveis apenas perante o próprio Duvalier e tinham licença para matar, torturar, violar e extorquir a população a seu bel prazer. Os cadáveres das suas vítimas eram frequentemente pendurados de árvores para aterrorizar o público, e os familiares que tentassem retirar os corpos para lhes dar enterro desapareciam igualmente sem deixar rastro.  Presume-se que, á parte um rol de outros crimes, os Tontons foram responsáveis por mais de 60 000 assassinatos.

Em 3 de Março de 1991, um cidadão americano chamado Rodney King não atendeu uma ordem de “stop” e obrigou a polícia de Los Angeles a uma perigosa perseguição pelas ruas da cidade. Finalmente encurralado, King parou e saiu para o exterior; os acontecimentos que se seguiram foram captados fortuitamente pela câmara amadora de um vizinho da localidade. King dirigiu-se aos quatro agentes da polícia numa atitude provocatória; de início as imagens são ambíguas, e é impossível determinar se King fugia ou atacava; mas depois tornam-se explícitas quanto ao nível da violência que foi aplicada pelos policiais sobre um King desarmado, prostrado e totalmente dominado; aliás como o testemunhou o estado de saúde crítico em que King ficou após o espancamento.

George Holliday, o autor do vídeo, divulgou-o á imprensa e o seu impacto a nível nacional foi imediato, catalisado por um elemento crucial: King era negro, e os quatro agentes da polícia que o espancaram eram brancos. O Ministério Público da cidade de Los Angeles acusou três dos agentes de agressão, e o agente supervisor de a ter consentido. Mas sob alegações de contaminação mediática, o julgamento foi transferido de Los Angeles para a comarca mais “solidária” de Simi Valley, onde um júri composto por dez brancos, um latino e um asiático ilibaram os quatro agentes. Perante o veredicto, a reação da comunidade política e da sociedade civil foi globalmente negativa. A título de exemplo, o então Presidente George Bush declarou ter-se reunido com os principais líderes cívicos, e afirmou que tanto eles quanto ele estavam chocados com o resultado.

Contudo, a verdadeira reação do coletivo americano a este primeiro veredicto não foi institucional, mas sim informal e proporcionalmente violenta. A ilibação dos policiais pelo tribunal de Simi Valley é globalmente apontada como sendo a causa direta dos distúrbios que grassaram Los Angeles em 1992, genericamente conhecidos como The LA Riots. Quando as autoridades civis e militares lograram finalmente controlar a situação, a violência tinha causado 53 mortos, 2383 feridos e mais de mil milhões de dólares em prejuízos materiais. Após os distúrbios, o Departamento de Justiça dos EUA reabriu o processo e obteve uma acusação de violação de direitos civis para os quatro policiais. O acórdão do tribunal federal que julgou o caso ilibou dois dos agentes, com a justificação que a aplicação de violência nestes dois casos ocorreu dentro dos limites legais; e condenou os outros dois a 32 meses de prisão, citando como atenuantes para a baixa pena aplicada a publicidade corrosiva a que estiveram sujeitos os acusados, a sua vulnerabilidade à agressão uma vez na prisão e o facto de terem sido submetidos a dois julgamentos. Não obstante a condenação dos dois agentes, o juiz federal criticou duramente o comportamento violento e alcoolizado de King durante o confronto.

Apesar da relevância deste processo para a fiscalização da conduta policial nos EUA, graves incidentes de brutalidade continuam a acontecer diariamente, dirigidos principalmente contra minorias raciais; ainda assim, estamos todos cientes de que a diferença entre a brutalidade policial americana e a dos Tontons no Haiti não se refere apenas ao grau e á extensão; deve-se à qualidade das respetivas instituições. A diferença é que, desde os primórdios da república americana, as dinâmicas entre o poder judicial, a imprensa e a sociedade civil expõem sistematicamente, os abusos cometidos pelos poderes executivos e criam as condições – sociais e institucionais – para o upgrade contínuo do sistema. King tinha numerosos antecedentes criminais, estava ao volante de uma viatura descomandada, não acatou uma voz de prisão e as análises sanguíneas feitas logo após o incidente provaram que estava embriagado. Mas mesmo perante a sua culpa comprovada, a sociedade americana reagiu explosivamente contra a violação dos seus direitos; não apenas porque foi abalado o seu sentido de justiça, mas porque reconheceu o perigo que esse tipo de violação representa para o coletivo. E perante a grave ameaça que uma polícia violenta e tribunais complacentes representa para todos os cidadãos, exigiu justiça às suas instituições policiais, judiciais e políticas.

E nóis? Qual é o nível de organização institucional, política, judicial, civil e étika que poderemos esperar do universo.cv numa situação semelhante à do espancamento de King? Por um lado, podemos estar descansados que a estrutura social e estatal Cabo-verdiana não tolera organizações da natureza dos Tontons Macoutes; por outro lado, podemos também contar com a escalada dos níveis de violência criminal e policial, congruente com rápida complexificação do tecido social.cv. Posto isto, em que latitude do mapa mundis se situam as nossas instituições públicas e as nossas sensibilidades sociais nesta matéria?

É verdade que estamos todos chocados com a brutalidade perpetrada contra o cidadão Américo Fortes; a sociedade Cabo-verdiana não consegue aceitar que o nível de violência aplicado pela Polícia Nacional tenha sido legítimo – e até “benevolente”, como afirmou João José Barros, comandante da esquadra da PN em São Filipe – num confronto que opôs um animador infantil isolado e desarmado a um grupo de agentes policiais formados e armados. Tudo bem, mas e agora? Será que temos maturidade sociopolítica suficiente para transformar este chagrin emocional em ação institucional?

Há um elemento do processo de Rodney King que é fundamental especificar, porque é indicativo da maturidade e da confiança institucional que caracterizam a sociedade norte-americana: a causa direta das LA Riots não foi o espancamento de King per se, mas sim o veredicto de Simi Valley. Quando o vídeo de Holliday foi disseminado, a sociedade ficou chocada com a violência e com o aspeto racial, mas aguardou a sentença do poder judicial. Foi apenas após a ilibação dos agentes que a sociedade americana reagiu fora dos mecanismos institucionais e enveredou pela violência popular. Mas assim que isso aconteceu, os atores institucionais identificaram imediatamente as suas responsabilidades e deram início a um processo federal, cujo veredicto pôde realmente ser entendido como idóneo. A sociedade americana está ciente que mesmo em democracia os processos falham, e os direitos do indivíduo estão sujeitos a violação. Mas nesse evento, é responsabilidade das instituições públicas repor a justiça, sob pena de perder a legitimidade.

Entre nós, até ao momento, os atos institucionais que pudemos observar no processo de Américo Fortes foram os seguintes: a aplicação comprovada de uma violência inqualificável contra um cidadão pela PN; as declarações do Comandante da Esquadra de São Filipe de que essa violência terá sido legítima e “benevolente”, antes da realização de qualquer inquérito válido, e após o sujeito ter afirmado que não se encontrava presente; e, finalmente, a declaração do Ministério da Administração Interna de que será ordenada uma averiguação ao Inspetor Geral de Segurança Interna (IGSI) e que “serão interpostos os competentes processos disciplinares se for recomendação do IGSI”. É preciso ressaltar que o âmbito desta averiguação será interno, e não assacará qualquer eventual responsabilidade criminal aos agentes.

E o que é que ainda não vimos neste processo? Em primeiro lugar, não vimos o Ministério Público reagir, como seria razoável esperar, ao estado de saúde crítico em que se encontrava Américo Fortes quando foi apresentado ao tribunal. Independentemente das medidas que possam vir a ser tomadas pelo cidadão, era responsabilidade da Procuradoria inteirar-se das circunstâncias que conduziram ao estado crítico em que se apresentava o prisioneiro. Também ainda não ouvimos qualquer reação do Comando Nacional da PN às declarações de João Barros: a PN tão-pouco nos afiançou de que a corporação policial Cabo-verdiana é idónea e que está ao serviço do cidadão; não nos garantiu que todos os agentes da PN estão cientes que, face a um delito, o seu mandato é repressivo e não punitivo; não nos declarou que havendo responsabilidade criminal no seio da Polícia de São Filipe, esta será assacada; e não nos garantiu que a PN não é refém dos interesses de quaisquer agentes individuais. Perante este conjunto de omissões – e face ao nervosismo justificado da opinião pública nesta matéria – podemos deduzir que a Polícia Nacional não está grandemente preocupada com a credibilidade da instituição junto à cidadania.

Finalmente, não tivemos qualquer garantia por parte da classe política de que podemos melhorar a confiança nas instituições policiais e judiciais.cv porque, caso for provado o abuso de força, as responsabilidades serão atribuídas e o sistema será aperfeiçoado em consequência. A independência política e ideológica das instituições judiciais e civis americanas foi o que garantiu a responsabilização da polícia pela violação dos direitos civis de um cidadão. Mas a qualidade das instituições Cabo-verdianas é incomparavelmente inferior; e se o auge do engajamento da sociedade civil.cv não ultrapassar o kumentariu online, não haverá qualquer força social capaz de as adequar às exigências da nossa sociedade contemporânea. E sendo assim, mesmo que estejamos seguros de que a Cabo-verdianidade não tolera instituições Tonton, nada impedirá a proliferação de episódios Macoute. And the next one could be you.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Rosário da Luz,5 abr 2014 0:01

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

3

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.