Ethos ku Logos

PorRosário da Luz,17 mai 2014 0:00

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2014: o desemprego é o problema mais ativamente referido pelo discurso social.cv, em todos os  seus quadrantes políticos, demográficos e regionais. Já o era em 2001, quando na sua plataforma eleitoral a atual maioria prometeu ao povo Cabo-verdiano a redução da taxa de desemprego para um dígito. Em 2006 – após a descoberta do petróleo turístico e dos diamantes da Boa Vista – o mesmo Governo anunciou rios de Investimento Direto Externo, a descolagem do sector privado nacional e a consequente erradicação do desemprego. Perante o crescimento débil registado em 2012, o Governo depositou o ónus da estagnação económica Cabo-verdiana sobre crise da zona Euro. Mas pelos vistos, a crise apanhou-nos totalmente de surpresa; porque escassos meses antes, na campanha legislativa de 2011, o Executivo tinha anunciado o 13º mês para a função pública, como se a economia navegasse no caudal de um surto de produtividade “blindada”.

É por demais evidente que o desemprego não desceu, nem o sector privado disparou, apesar de todo este vigor discursivo e do investimento que efetivamente o acompanhou. Ao longo de treze anos foram feitos investimentos ostensivos na educação, na formação, na capacitação, na infraestruturação, na legislação e no empreendedorismo, com o objetivo de transformar a economia e a sua capacidade empregadora. Mas no final do seu terceiro mandato – e após sérias dificuldades em a justificar a dívida pública perante a sociedade e os financiadores – o Executivo vê-se constrangido a celebrar de cara contente as variações decimais de uma taxa de desemprego que se mantém teimosamente perto dos 20%.

Num Estado democrático, o elenco político é periodicamente validado pelos eleitores; e nesse quadro, promessa é dívida. Então como explicar que um Executivo que apresenta como balanço de treze anos de governação uma taxa de desemprego de 16,4%, não tenha mais contrariedades do que uma ameaça de greve, devidamente cancelada, e que ainda deixou como bónus a divisão dos sindicatos? Como perceber que a persistência da burocracia, da agressão fiscal, da exiguidade de crédito, do clientelismo e da ocupação do mercado pelas organizações estatais não leve a classe empresarial a alienar-se em bloco desta Administração? Será que o trabalhador está desempregado, o empresário falido, mas nenhum deles percebeu? Ou será que o discurso político é uma coisa, e as expectativas reais da população sobre esse discurso são outra coisa completamente diferente?

O sociólogo Pierre Bourdieu refere um fenómeno que considera representativo das democracias modernas e que classifica como “a descontinuidade radical entre ethos e logos” – entre o procedimento e o discurso no universo político contemporâneo.  Segundo Bourdieu, o ato de delegação encerra uma armadilha elementar para o sistema democrático: através dele, o profissional político adquire um mandato para representar a vontade dos seus constituintes, e esse mandato reduz o eleitor ao estatuto de mero consumidor do sistema, inteiramente dependente do seu representante. Mas os políticos, ao invés de representar fielmente o constituinte, acabam por se dedicar á prossecução dos seus próprios interesses e os das suas corporações.

Como é que o político consegue manter o eleitor preso a este acordo draconiano, lesivo dos seus próprios interesses? Numa sociedade complexa, o cidadão comum necessita de representação política especializada para se fazer ouvir, e delega a proteção dos seus interesses a uma das candidaturas da praça. Segundo Bourdieu, o acordo de representação que dali resulta é mantido a favor da classe política através de um arranjo que ele designa de “mentira sagrada”: os representantes desenvolvem uma identidade pública e um discurso totalmente devotados aos interesses dos seus constituintes; a farsa é suportada pelas competências discursivas dos profissionais políticos – e por alguma atenção autêntica outorgada aos interesses do eleitor.

Contudo, se a dissonância de interesses for sentida pelo cidadão como radical – e se lhe for ofertada uma alternativa credível de governação – a democracia oferece-lhe a oportunidade periódica de mudar de freguês. Mas aparentemente, apesar do desemprego rompante e da falência das empresas, apesar da insegurança pessoal e da desregulação social, os eleitores Cabo-verdianos ainda não sentiram a necessidade de mudar de freguês. Porquê?

É fascinante esta dicotomia, persistente no cabo-verdiano, entre a sensibilidade socioeconómica do cidadão-operador e a sensibilidade política do cidadão-eleitor. Cabo Verde tem licenciados desempregados, trabalhadores congelados e empresas que são sistematicamente lesadas pela ação governativa; mas na hora do vamo votar, a vontade política do trabalhador, do profissional e do investidor cristaliza-se em torno de uma matriz exclusivamente política, e exprime-se de forma completamente independente do seu interesse económico. Porquê?

Um dos pilares de suporte deste status kuo é a evidente incapacidade da nossa classe política de produzir lideranças alternativas à governação atual, facto que distorce o mercado eleitoral.cv a favor da maioria vigente. Para além disso, é compreensível a vantagem dos poderes incumbentes na sociedade Cabo-verdiana, pela sua capacidade de arrebanhar clientelas enquanto dispensadores das benesses do Estado – num universo onde os recursos encontram-se quase exclusivamente sob o domínio do Estado. Mas nada disso explica a tolerância extrema da população Cabo-verdiana pelo defraudar sistemático das suas expectativas de emprego e prosperidade – a não ser que estas não sejam realmente as suas expectativas.

As reais expectativas económicas acalentadas pelos Cabo-verdianos refletem de forma direta a sua experiência produtiva e cultural. A nossa experiência histórica do desemprego tem os contornos trágicos das fomes que nos devastaram em ciclos curtos ao longo de 500 anos. Em comparação aos quadros de miséria humana que ainda persistem na nossa memória coletiva,  a atual taxa de 16,4% é uma experiência benigna do desemprego – onde ninguém morre de fome porque o Estado consegue mobilizar a assistência externa em quantidade suficiente para compensar as nossas deficiências produtivas. Nem o Estado nem a população de Cabo Verde têm qualquer referência para a autossustentabilidade da economia; consequentemente, não há qualquer expectativa séria da sociedade nesse sentido.

Então quais serão as reais expectativas dos Cabo-verdianos sobre a governação económica do país? As verdadeiras expectativas do agente Cabo-verdiano não se prendem aos textos disseminados pela governação económica, mas aos subtextos. Quando o Zé Povinho é entrevistado pela TCV a lamentar a sua falta de trabalho, o seu problema real não é a taxa de desemprego, mas a sua exclusão pessoal das redes de benefícios operadas pelo Estado. Paralelamente, quando o Estado fala de petróleo, de diamantes e da alavancagem definitiva da economia,  o seu verdadeiro propósito é comunicar ao eleitor a sua disponibilidade para alargar, tanto quanto possível, a rede pública de beneficiados.

Ao longo dos últimos 40 anos, a inserção na burocracia do Estado tem constituído a única via plausível de emprego e mobilidade social para a massa dos trabalhadores Cabo-verdianos; e tanto o Governo quanto os cidadãos têm a consciência clara de que o emprego público não é gerado internamente, e depende da capacidade do Governo de financiar o Orçamento do Estado com donativos. Ninguém parece acreditar realmente no desabrochar de uma economia privada em Cabo Verde; e sendo assim, há que ter a devida consideração pelo inegável talento angariador de ajudas demonstrado por este Governo ao longo dos últimos treze anos.

Ambas as partes – eleitores e eleitos – concordam tacitamente que o fundamental é que o Estado seja capaz de continuar a alargar a sua rede de emprego e assistência social; e de acordo com a nossa sensibilidade produtiva, forjada ao longo de 500 anos de estagnação, a única ameaça genuína ao bom andamento da economia Cabo-verdiana é que o Executivo falhe nessa missão. Quanto ao papo de compromisso com a sustentabilidade económica do país, isso é conversa para financiador dormir.

 

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Autoria:Rosário da Luz,17 mai 2014 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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