Futxibóu

PorRosário da Luz,23 jun 2014 0:01

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Tinha projectado para esta semana um texto inflamado sobre a insensatez generalizada que gira em torno do tema da regionalização.cv, e que me está a tirar do sério. Mas quem sabe daqui a uns dias; porque quando me sentei para rever a literatura laboriosamente reunida sobre a matéria, dei por mim totalmente fora da região, a pensar em Robin Van Persie e Arjen Robben lá longe em Salvador, a brilhar no jogo inaugural da Holanda contra a Espanha. Ai, beijinhos para ti também, seu careca fatal! Estou irreconhecível: e quem me conhece, perceberá o quão extravagante é este takeover da minha mente pelo futebol.

Já fui espetadora interessada de três desportos, em diferentes fases da minha vida: ténis, quando era adolescente; basquete, quando universitária; e futebol, a partir da década de 1990. Desses três, é o futebol que menos tempo me pregou em frente à TV. Sempre observei os torneios de ténis e os playoffs da NBA da minha juventude como ritos anuais, mas para mim o futebol só assumiu importância quando voltei para a terra, pós-universidade; e foi como um culto estritamente bissexto, resumido e consumido pelo Mundial da FIFA (um padrão que só foi perturbado no ano passado, quando a Selecção Nacional  estreou-se na fase final do CAN). Mas atenção: a Copa para mim é um fenómeno bissexto, mas intenso; porque de quatro em quatro anos fico, por um mês inteiro, completamente apanhada. Porquê?

Na segunda-feira passada, antes do Alemanha-Portugal, uma amiga brasileira, simpatizante lusa, postou no Facebook o seu suporte pelos Quinas. Um kriol amigo dela reagiu com um kumentariu raivoso: recusava-se a torcer por “fascistas, colonialistas e traficantes negreiros”. Não percebi muito bem; ao fim e ao cabo, estamos em 2014; e sendo Portugal actualmente um Estado de Direito Democrático, é quase certo que já não pratique o fascismo, o colonialismo ou o tráfico negreiro. Mas por outro lado, no mesmo universo.cv, a Seleção Portuguesa goza de uma larga base de entusiastas, principalmente entre os mais-velhos – que torceram por Eusébio e pela nação Lusa no Mundial de 1966 – e os mais-jovens, fãs da sua megaestrela internacional, Cristiano Ronaldo. É essa capacidade excepcional de veicular um rol de valores – atléticos, estéticos, éticos, étnicos, territoriais, históricos e ideológicos – que faz do Mundial um centro de gravidade tão forte que nem os espíritos habitualmente indiferentes ao futebol lhe escapam.

Pessoalmente, o meu entusiasmo pela Copa também resulta de todo esse seu drama internacional; mas depende igualmente da formação de um elo emocional forte com uma das equipas em competição. Digo “uma” porque Cabo Verde nunca lá foi (era desta vez mas não foi); e no que diz respeito ao futebol do resto do Mundo,  sou uma criatura promíscua, que troca de paixão a cada Mundial, sem o mínimo de sentimento pelo antigo amor. Mesmo assim, acabei sempre por demonstrar uma certa constância nas minhas relações: até 2010, as minhas preferências foram invariavelmente para as selecções da Mamãe África – Camarões em 94, Nigéria em 98, Senegal em 2002, Costa de Marfim em 2006 e Gana em 2010.

Mas agora, it´s the end of my african cycle. Em 2014, apesar de se terem qualificado todos os brothers supracitados, as eternas riolas das seleções africanas em torno de venalidades são-me de tão má  memória que, desta feita, nenhuma logrou ganhar o meu coração. E assim, pela primeira vez, a relação eu-Copa consumou-se através de uma equipa europeia: a Holanda. Curiosamente, por uma razão próxima da minha habitual preferência pelas equipas africanas: porque seduz-me a audácia against all odds e o atrevimento de pequenos perante os grandes. Mas no caso da Holanda, este pequeno é na verdade um pequeno gigante.

A Alemanha tem 348 500 Km2 de superfície e 81 milhões de habitantes; a Holanda tem uma superfície de 5500 Km2 e pouco mais do que seis milhões de almas. Mas tem uma relevância histórica, económica e cultural que é completamente desproporcional ao seu reduzido tamanho: só não tem – apesar da sua equiparável relevância futebolística – o título de campeão mundial, à semelhança da Alemanha, Inglaterra, Itália e Espanha, os gigantes grandes do Ocidente Europeu.

Na passada 6ª-feira dia 13, saí sem grande emoção para assistir ao Holanda-Espanha; o elo ainda não se formara e quando o jogo começou não sentia mais do que uma calma preferência pela Holanda – a tal ternura pelo pequeno gigante. O anúncio do penálti a favor da Espanha deixou-me apenas levemente irritada, e a minha reacção não passou de um “Hunff!!” partilhado com os meus companheiros de mesa. Mas quando, aos 44 minutos, Van Persie marcou aquele golo – que seria apenas o primeiro dos cinco di xuxadera – o meu coração começou a adquirir um tom de laranja cada vez mais profundo.

Fiquei toda Laranja porque amei a simetria simbólica do encontro: uma sova mestra logo no início deste Mundial, quatro anos após a Espanha ter derrubado a Holanda na final do África do Sul 2010. Fiquei Laranja devido ao charme, à inteligência, à virilidade e aos incríveis corpos masculinos, capazes de proezas sobre-humanas que a Selecção Holandesa pôs à minha disposição. Fiquei Laranja porque Robben me mandou beijinhos. E a partir do momento em que isso aconteceu, toda a emoção que o Mundial deve suscitar num ser humano entrou-me bruscamente no activo.

Rola pelo ciberespaço um vídeo fenomenal, onde um comediante Inglês explica ao público americano a contradição entre o seu inabalável entusiasmo pelo Mundial e o seu desprezo pela FIFA – que caracteriza como uma organização cinicamente criminosa. “Então porquê”, pergunta, “Que gente honrada e informada continua a compactuar com a postura vergonhosa dessa instituição?” Porque, explica, a esmagadora maioria dos adeptos entende o futebol como religião; e porque, infelizmente, o futebol não é apenas uma religião, é uma religião organizada; sendo assim, a FIFA é a guardiã da fé e da ortodoxia; e sendo assim, os fiéis terão que sobreviver a Sepp Blatter, tal como o Vaticano sobreviveu a Rodrigo Borgia. 

Não é este obviamente o meu entendimento do futebol, que para mim não é nada parecido com uma religião. Aliás, já tinha confessado a minha infidelidade estrutural, quando se trata do universo exterior à Selecção Cabo-verdiana.  Mas a participação periódica no frenesim do Mundial faz-me perceber um pouco melhor o amplo universo dos adeptos assíduos e ardentes do desporto rei, que incubam deliberadamente este nível de excitação e alienação numa miríade de campeonatos durante todo o ano, todos os anos. Durante a Copa, percebo com maior clareza que a atracção do futebol não é bem futebol. É evidente que a proeza atlética é parte central da experiência; mas perícia desportiva em campo não passa de um veículo artilhado para uma pilha de questões que lhe são completamente independentes. 

A nossa necessidade permanentemente frustrada de acção e excitação é uma delas. Na sequência de centenas de milhares de anos a evitar areias movediças, garras de tigre e dentes de mamute, o ser humano ficou completamente viciado em adrenalina. Infelizmente, a vida e o mercado contemporâneos oferecem à maioria dos seus participantes grandes doses de stress, mas muito pouca adrenalina. Para além disso, sempre fomos – e continuamos a ser – criaturas profundamente territoriais; mas agora só há território para defender nas franjas da sociedade planetária; de resto, no mundo civilizado, as invasões hostis estão limitadas aos embates no relvado.

Mas tudo bem; com a devida psico-estimulação, o futebol permite-nos suprir essa deficiência da vida moderna e proporciona-nos uma experiência inebriante da adrenalina no seu avatar tribal. A cada bola metida ou defendida, sentimos virtualmente tudo o que nos rouba a vida no escritório, na fábrica, no balcão e no subúrbio: amor, raiva, certeza, celebração e a segurança de podermos identificar linearmente quem está com ou contra nós. E durante as intermináveis sequências anuais de campeonatos, taças e ligas, temos o conforto permanente de poder comungar, em delírio de fé, com a irmandade por nós eleita. No que me diz respeito, faltam-me apenas três semanas para que este mood maluco desapareça por mais quatro anos. E apesar do prazer visceral, social e estético – que muito aprecio – dou graças que a febre do futxibóu só me apanha no Mundial. Mas ainda estamos no Mundial, e a coisa tem muito que andar; portanto, pelas próximas semanas, Laranja ao rubro e Hup Holland Hup.

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Autoria:Rosário da Luz,23 jun 2014 0:01

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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