Seychelles, um exemplo de sucesso crioulo (parte III)

PorExpresso das Ilhas,5 ago 2014 0:00

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“… si ca mandone um cdjer de pápa d´ estranger, nôs ê cuitode naufragode na meio de mar…”

Neste excerto da coladeira “Sonho dum Criolo”, Manuel de Novas, o compositor cabo-verdiano que melhor retratou a vivência e as idiossincrasias verdianas, descreve a opção do regime verdiano do pós­-independência de se ancorar (verbo muito em voga) na perniciosa ajuda (esmola) externa. Reafirmo a minha crença de que a verdade está na boca das crianças e dos artistas.

As Seychelles (SY) desde a independência tentaram andar com os próprios pés, deitando por terra a teoria de que as ilhas só subsistem com subsídios; tombam também o mito da ancoragem a áreas conti­nentais próximas: a Europa está bastante longe e a integração africana é inexistente. Actualizemos mais alguns quadros da nossa sabatina.

 

 Dois arquipélagos africanos e crioulos, duas estratégias opostas: SY = investimento externo e economia real; CV = ajuda externa, gerida pelo Estado.

Aferindo os dados anteriores pela população, continuamos a ser especialistas em mobilizar donativos enquanto os nossos primos seychellois são uns craques a angariar investimento externo, como se pode ver no quadro seguinte.

 

 

 Infra-estruturas, austeridade e esbanjamento - As SY só têm um aeroporto internacional que fica na ilha principal, Mahé. A ilha mais próxima e segunda em população é Praslin a 49km. Para se chegar lá vai-se de fast ferry (semelhantes aos nossos), numa viagem de 1h, ou então 15m em aviões Twin Otter. Aqui em CV, a Boavista está a 50km do Sal e ambas têm aeroporto internacional. E não faltam vozes a pedir aeroportos para o Maio, Fogo, e porque não S. Antão aqui a 15 km de S. Vicente!

As estradas das SY são estreitas e sem bermas, ficando muito aquém das nossas - a mesma diferença entre as auto-estradas portuguesas e as estreitas estradas irlandesas ou ainda entre o metro de Lisboa e de Londres. Porque será que os bem-sucedidos são os que investiram no software e são austeros no hardware?

A esmagadora maioria dos carros nas SY são do tipo Fiat Punto; as proibitivas taxas alfandegárias que chegam aos 225% visam desencorajar a importação de carros de alta cilindrada. Já era assim há 21 anos quando conheci o primeiro seychellois que nem tinha carro. Foram precisos 4 dias para vermos dois Jeeps – faziam parte da escolta de segurança do Presidente da República – e eram Toyotas Prado GX, um modelo banal em CV. Comparado com o austero parque automóvel das SY o nosso é simplesmente escandaloso! O que as SY poupam em combustível e peças, nós esbanjamos em ostentação, com o Estado à cabeça. As SY baniram a pobreza e nós ainda temos mais de 120 mil almas na pobreza; vivemos com dinheiro alheio, mas temos um parque automóvel que não se vê na rica Noruega. Alguém da comitiva contou a esse propósito que o primeiro-ministro do Luxemburgo “que tanto dinheiro nos dá”, quando visitou CV chegou na classe económica de um avião comercial, para espanto geral do nosso pessoal – “uma verdadeira bofetada”.

Visitamos a escola de turismo das SY, construída com crédito bancário internacional e que tem que procurar receitas para pagar a dívida. A nossa escola, muito mais moderna e mais bem equipada (uma das melhores de África segundo uma das consultoras do Banco Mundial) foi feita com dinheiro dos impostos dos luxemburgueses.

Por serem tão poupados, os ricos crioulos das SY podem gastar dinheiro em coisas menos supérfluas. Actualizemos um quadro sobre a saúde.

 

 

 Informalidade - Os seychellois só usam fato e gravata quando viajam para fora do país; nós vivemos a transpirar dentro de fatos de corte europeu, apesar de sermos tão africanos. Os crioulos das SY tratam as pessoas pelo nome próprio ou pela posição que ocupam. Nós, por sermos mais portugueses do que queremos admitir, temos que decorar quem é Dr., Mestre, Doutor, Engenheiro ou Arquitecto, para não ofender susceptibilidades.

A confusão com as Maurícias - Existe a tendência para se confundir as Seychelles com as Mau­rícias (MAU). São países diferentes, embora com um passado histórico e língua comuns. A população das MAU é 68% hindu, 27% creóle (e católicos), 3% chineses e 3% de origem francesa; muito diferente das SY que são quase todos creóle e 90% cristãos.

As SY já foram os primos pobres das MAU, da qual até dependiam administrativamente durante a época colonial. As MAU têm uma economia diversificada, com uma agricultura forte, várias indústrias, serviços financeiros (32.000 empresas offshore!) e turismo. Exportam um pouco de tudo, ou seja, são bons alunos dos manuais de economia.

 

 Nas SY a indústria resume-se a enlatamento de atum (94% das exportações do país) onde trabalham emigrantes indianos e um processamento marginal de cocos e vanilla. A agricultura é incipiente e se­gundo nos informaram os jovens não querem saber dela; preferem trabalhar no luxo dos hotéis a aturar 25-34ºC e uma humidade quase insuportável - por cá gastamos milhões para mobilizar água, mas “ilhas agrícolas” como S. Antão, S. Nicolau, Fogo e Brava perdem população todos os anos.

As SY importam quase tudo, desde frango do Brasil até pão da Europa (94% das importações são isentas de taxa alfandegária)! A reduzida mão-de-obra é empregue em actividades de alto valor acres­centado, turismo e serviços financeiros, e importam os bens que precisam. Se fosse vivo, o economista David Ricardo haveria de gostar de visitar as SY.

O turismo nas MAU é massificado, contrastando com o exclusivo turismo de luxo das SY – e ambos os arquipélagos são igualmente verdejantes, com praias de coqueiros. O ministro de turismo seychellois citou-nos exemplos de incidentes de turistas assassinados por locais tanto nas Maurícias como nas Caraíbas, algo impensável no inclusivo turismo de luxo seychellois.

Hoje o principal destino de férias dos cidadãos seychellois são as MAU. Para vir para o luxo dos hotéis das SY só mesmo os mauricianos mais ricos. Não deixa de ser irónico que hoje os “ex-pobres” seychellois sejam quase duas vezes mais ricos dos que os seus outrora mais poderosos primos mauricianos. Vejamos o quadro seguinte.

 

 

 Qual a diferença? Eu arrisco o meu palpite: foco no turismo de luxo nas SY, que ao tornar-se no 4º país mais dependente do turismo do mundo deixou a léguas as MAU. Em crónicas futuras demonstraremos a correlação entre esse rácio turistas/habitante e o desenvolvimento dos Pequenos Países Insulares do planeta Terra.

Qualidade vs quantidade - CV recebe cerca de 500 mil turistas europeus das classes média-baixa, as SY recebem 230 mil turistas das classes média e alta dessa mesma Europa. Resultado: os seychellois são 7 vezes mais ricos que nós.

Promoção do país - apesar de serem um conhecido destino turístico, as SY gastam 5 milhões de euros por ano em promoção, possuindo inclusive escritórios em vários países para esse efeito. CV gasta cerca de 5% desse valor. Repito o que escrevi há 1 ano: imagino o que não fariam as SY se tivessem uma Cesária Évora!

O desemprego nas SY é de 1% e desde 1998 essa taxa está abaixo dos 5%. Os jovens licenciados seychellois têm emprego garantido. Em CV temos mais de 6 mil recém-licenciados desempregados; nestes dias acontecem as festas de finalistas das muitas universidades e por detrás dos sorrisos e champanhe, irá crescer o número de famílias endividadas com filhos licenciados e no desemprego.

A falácia das paisagens - a maioria do turismo balnear mundial concentra-se na bacia mediterrâ­nea – sul da Europa e Norte de África – em paisagens quase desérticas. As ilhas Canárias, tão parecidas com CV, recebem cerca de 10 milhões de turistas/ano, mas continuamos a querer atribuir o sucesso das SY às paisagens verdejantes. Uma pergunta inquietante: se CV tivesse as paisagens das SY estaria hoje tão desenvolvido?

Em 2003 durante a Cimeira Mundial do Turismo, o Presidente da Câmara de Turismo da Grécia apresentou-me a Directora-Geral de Turismo das SY (grande fã de Cesária Évora), dizendo que era o melhor exemplo que CV poderia seguir. Confirmei na viagem às SY que o meu amigo grego sabia o que estava a dizer – por alguma razão o homem já foi Presidente do Conselho Consultivo da Organização Mundial de Turismo e a ex-DG do Turismo das SY é hoje um alto quadro dessa organização. Nunca é tarde, 11 anos depois a nação verdiana teve a humildade de ir às SY, uma excelente iniciativa.

Irónico foi ouvir que as SY gostariam de ter a nossa localização perto da Europa, a nossa população e dimensão territorial e a nossa diáspora para viabilizar a Air Seychelles! O turismo de cruzeiros nas SY baixou para 10 barcos/ano por causa da pirataria, que lhes prejudica também a pesca.

Tudo o que vimos nas Seychelles pode ser feito em CV. O que não significa copiar. Já tivemos a nossa quota-parte de modelos – Islândia (pesca), Tigres Asiáticos e Maurícias (exportações), etc.

Os destinos turísticos de qualidade constroem-se atraindo as grandes marcas – um papel conjunto do Estado e dos privados. Marcas como a Kempinsky, em cujo hotel de 150 quartos o nosso Presidente e Ministro ficaram instalados nas SY; trata-se da marca de luxo mais antiga da Europa e tem um MOU assinado para construir um hotel de 250 quartos mais 100 Kempinsky Residences na Baía das Gatas, vencendo uma disputada short-list onde estavam Starwood, Marriot, Radisson e Hilton.

Na reunião de balanço da viagem, o nosso Ministro do Turismo afirmou que a maior lição que levava das Seychelles era a palavra articulação. Eu vou mais longe: o que vimos nas SY foi cumplicidade entre o Estado, o sector privado e a sociedade no seu todo. O oposto do que temos em CV. Iremos mu­dar? O djunta mon deixará de ser apenas retórica? Vamos mudar os chips, a começar pelos ideológicos? Esperemos que sim.

Fomos convidados na linda festa do Dia Nacional das SY, num estádio de futebol apinhado de gente a acenar com bandeirinhas das SY e de CV! Foi emocionante ver paraquedistas franceses aterrarem no estádio com bandeiras das SY, CV e França. O Presidente das SY fez um eloquente discurso num crioulo pausado e que entendemos na íntegra. A palavra qualidade foi repetida várias vezes. Depois das impres­sionantes paradas de militares, polícias, bombeiros e escuteiros, e já noite adentro, seguiu-se um bonito esquema feito por 400 jovens, que terminou com um gigantesco 21, a celebrar os 21 anos de democracia desta jovem nação crioula. Sentia-se no ar a confiança no futuro dos 400 jovens a cantar Secelles, mon petit jolie pays, secundados pelos milhares de populares nas bancadas. Não pude deixar de sentir um imenso orgulho nesses crioulos ilhéus e africanos!

Quem me dera que o Petit pays de Cesária Évora também estivesse a transpirar confiança…

Back to reality – na viagem de regresso rimo-nos da simplicidade da porta de embarque do aero­porto das SY, que mais parece uma porta de uma casa! Ao chegarmos à Praia, depois de uma extenuante viagem via Abu-Dhabi, Bruxelas e Lisboa, fomos recebidos por uma moça da Polícia de Fronteiras que nem respondeu ao boa noite que lhe demos! Que saudades dos sorrisos seychellois! Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas vamos ser optimistas…

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Autoria:Expresso das Ilhas,5 ago 2014 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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