A ministra da Administração Interna repetidas vezes nas suas intervenções durante o debate sobre o estado da Nação confessou-se adepta entusiástica da “honestidade intelectual”. A impressão geral, porém, que não essa é a atitude que propriamente caracteriza o debate público em Cabo Verde. O uso da propaganda, a exploração de sentimentalismos diversos, as incursões feitas na demagogia pura e dura não permitem que, do confronto de ideias na esfera pública, o país reconheça os seus reais problemas, identifique os desafios a vencer e colectivamente encontre a via da prosperidade, na liberdade e com dignidade. Os sucessivos apelos do presidente da república a que os actores políticos falem verdade ao país evidenciam o muito que se tem desviado da postura responsável na relação entre os governantes e a população.
Ao longo do debate sobre o estado da Nação ouviu-se de tudo. O prato maior foi discutir os anos noventa. O primeiro-ministro e os seus ministros lançaram-se em interpretações do que supostamente terá acontecido nos dez anos de governação do partido hoje na oposição. O móbil para esta incursão no passado de há quinze anos atrás terá sido a preocupação em retirar legitimidade às críticas feitas à governação de hoje e desqualificar a oposição como alternativa ao governo nas legislativas de 2016. O problema é que com tal abordagem não é possível qualquer debate, muito menos um que se possa reivindicar de ser honesta intelectualmente.
Fale-se em honestidade intelectual, quando geralmente se reconhece publicamente que há pontos de vista alternativos, quando se dirige ao argumento e não à pessoa, quando se consegue aceitar que uma crítica é valida ou tem pontos válidos e quando se é consistente na argumentação e não se procura distorcer o que diz o interlocutor ou o adversário para melhor o puder vencer aos olhos dos outros. Há quem entenda a política como negação de tudo isto. Mas a verdade é que o sistema político por ser uma democracia e basear-se no pluralismo, na livre expressão de ideias e no consentimento dos governados, pressupõe o cumprimento de uma série de regras para se manter dinâmico e com capacidade adaptativa. Por exemplo, a quem é dado mandato para governar, exige-se um grau elevado de responsabilidade, transparência e de verdade na condução das questões públicas e não se lhe aceita que por qualquer via procure impedir a emergência de soluções alternativas de governação. Quando não se cria uma cultura de cumprimento das regras procedimentais da democracia, o Poder tende a descair para o autoritarismo, a tornar-se autista e a socorrer-se cada vez mais da propaganda para se comunicar.
Os partidos políticos têm um papel fundamental na criação da vontade política. Distinguem-se entre si nas opções político-filosóficas, na sua visão do futuro do país e na forma como interagem com a sociedade no processo de influenciação e mobilização de vontades. São normalmente marcadas pelo momento histórico que lhes deu origem, mas ninguém os quer presos ao passado. Portadores de uma ideologia própria que os identifica e distingue não, se espera deles a honestidade intelectual exigida na academia e aos “homens livres”. Mas também não devem cair no extremo oposto do cinismo e hipocrisia que impossibilita negociações e acordos e mantem a sociedade em estado de permanente crispação.
O programa eleitoral e o programa do governo são os dois principais componentes do contrato firmado com o eleitorado e para o cumprimento do qual se lhes atribuiu um mandato. Os partidos devem, sem desvios e subterfúgios, serem fiscalizados pelo cumprimento das promessas gerais que foram feitas. Não há lugar para frases do tipo “o governo não pode fazer tudo e por isso o povo deve ser paciente e desculpar as falhas ainda existentes”. Ou então, “o governo já fez a sua parte e não tem culpa de que os outros,as empresas, os trabalhadores e as famílias não estejam a colaborar”. Devem cumprir o prometido, nem mais, nem menos. Não podem é falhar nos objectivos e de seguida forçar o país a aceitar os resultados obtidos como os únicos possíveis. Também não podem desresponsabilizar-se perante a falta ou o desvio da iniciativa e energia das pessoas para se atingir objectivos colectivos com o argumento de terem feito a sua parte. Governa-se é com os olhos postos em objectivos globais da comunidade. Ao governo dá-se instrumentos e recursos para fazer convergir vontades na consecução desses objectivos. Fracassos têm que ser assumidos por quem de direito. Honestidade intelectual e responsabilidade política assim o exigem. A questão de segurança, por exemplo, que tanto preocupa os cabo-verdianos devia ser dos sectores em que a postura honesta de todo o sistema envolvido poderia ser crucial para se obter a confiança e a participação de todos, em particular das comunidades nos bairros e para que “paz e tranquilidade” em Cabo Verde fossem o ouro e o diamante que o poeta cantou.
Cabo Verde entrou numa nova fase como país de rendimento médio a partir de Janeiro de 2014. O contexto internacional adverso, o crescimento raso da economia nacional e o desemprego elevado conjugam-se para tornar a transição mais difícil e complicada. Devia-se esperar que esta realidade prenhe de consequências tivesse a merecida atenção no debate. Não aconteceu. Uma discussão intelectualmente honesta teria levado todos lá facilmente.