Em 1976 o escritor afro-americano Alex Haley publicou o seminal Roots, um romance que se tornaria num dos textos mais influentes da modernidade do seu país. Nele o autor, inspirado pelas reminiscências da sua avó materna, ela mesma filha de escravos, traça a história da sua família até ao Século XVIII, a um antepassado africano chamado Kunta Kinte, a quem a avó se referia como “the farthest back person”. Originário de uma aldeia na atual Gâmbia, o Kinte da saga de Haley foi raptado aos dezasseis anos por traficantes de escravos, embarcado para a América e vendido a uma plantação na Virgínia.
Em finais da década de 1960, Haley chega ao rio Gâmbia; as suas investigações levaram-no a localizar um velho griot na aldeia de Juffureh, que lhe confirma a existência local da família Kinte, assim como a história do rapto de Kunta nos mesmos termos da sua tradição familiar – enquanto este procurava madeira para um tambor. Na série televisiva do mesmo nome (1977), Haley é interpretado pelo ator James Earl Jones – Darth Vader em Guerra das Estrelas – que, na encenação deste episódio, exclama emocionado “I found you, old African!”
Roots suscitou reações diversas: o sucesso popular do romance e da série foi bombástico; mas apesar da sua contenção de que a investigação fora rigorosamente documentada, Haley foi alvo de fortes críticas, oriundas principalmente da academia. Os seus críticos questionavam fundamentalmente a fiabilidade metodológica da obra; mas alguns iam mais longe, afirmando que a confirmação do griot tinha sido encenada e que toda a aldeia se teria unido num complot para a validação da história, em consequência de um forte conjunto de interesses simbólicos e materiais. A sua contenção era que o valor de Roots residia no seu poder narrativo e emocional; mas o rigor histórico não pode ser comprometido a favor do interesse ideológico – e muito menos do melodrama.
A agitação em torno desta obra ilustra bem o dinamismo secular da intelligentsia e da sociedade civil americanas: a paixão e a tenacidade do autor na abordagem do tema; o objetivo admirável de contribuir para o restabelecimento da origem e da memória de um povo que foi tão violentamente despojado; forças cívicas capazes de articular sólidos contraditórios, tanto metodológicos como ideológicos; e uma comunidade fortemente engajada no debate analítico do seu processo histórico.
Nós, coitados, não partilhamos as mesmas tradições intelectuais ou profundidade cultural; e, justiça nos seja feita, também não temos os mesmos dólares. Mas o que realmente diferencia a relação da psique Cabo-verdiana com a África e com o seu passado escravo é a profundidade do trauma. Para o afro-americano, a escravatura e a segregação racial constituem traumas recentes, brutais, cujas sequelas são parte integrante do seu universo contemporâneo. Mas para o espírito Cabo-verdiano, durante uma longa estação cultural, a escravatura não passou de uma abstração, tratada exclusivamente pelos intelectuais da terra, sem qualquer representação na memória popular.
Como instituição económica.cv, a escravatura falhou redondamente, tal como atestam todos os nossos historiadores; o tráfico negreiro e as grandes plantações que faziam uso da mão de obra escrava conheceram um declínio abrupto a partir do século XVII, e a sua memória foi suplantada pelo trauma de quatro séculos de estiagens e fome. O nosso trauma é a fome; é a memória social da fome que ainda incute temor em quem não a sofreu, ou sequer a testemunhou; é o espectro da fome e não o da escravidão que ainda povoa o nosso universo psicológico e cultural.
Quanto ao continente dos nossos antepassados, nunca se evidenciou no Cabo-verdiano a necessidade emocional de procurar as suas origens nos Rios da Guiné. Se excluirmos o tráfico entusiástico que sempre se desenvolveu no sentido de dnher d’Angola, veremos que o interesse económico e cultural dos Cabo-verdianos pelo continente Africano é incrivelmente limitado. Não obstante, a nossa indiferença em relação à África real – tão criticada por Carlos Lopes, e tão assumida pelo Primeiro-ministro, bem haja – coincide com uma prodigiosa agitação discursiva e simbólica em torno do útero sagrado de uma Mamãe África por nós imaginada.
Em 1983, Marion Zimmer Bradley publicou As Brumas de Avalon, um verdadeiro fenómeno da literatura popular. No romance, Avalon é um universo paralelo à região de Glastonbury, na Inglaterra; coexiste no mesmo espaço mas só é acessível através da invocação de uma bruma mágica. Avalon representa o velho centro da religião britânica pré-cristã; as suas sacerdotisas têm como missão a defesa do paganismo ancestral, numa Bretanha pós-Romana onde o Cristianismo ganha progressivamente a proteção do Estado e a aceitação popular.
O romance de Bradley evoca uma era edénica da identidade bretã, e celebra a superioridade do seu ethos social e espiritual sobre a Bretanha cristã que lhe sucedeu. Porém, obviamente – ao contrário de Haley – a autora nunca tentou convencer ninguém da veracidade histórica da sua trama: o leitor está ciente a todo o momento que o mundo mágico de Avalon retrata uma Bretanha imaginada, que bebe predominantemente em interpretações literárias da História. Escusado será dizer que nenhum país de ascendência bretã – Inglaterra, Irlanda, EUA – reinstituiu a sua identidade pagã em consequência desta fantasia ou erigiu o estudo de Avalon em pilar do programa educativo e cultural do Estado.
Chez nous, apesar do seu óbito social e cultural, a identidade africana e o passado escravo.cv foram invocados das brumas da memória pelas narrativas da Independência e restabelecidas como elementos centrais do nosso universo simbólico. Num primeiro tempo, o processo resultou linearmente da vontade expressa de um Estado autoritário a quem a ideologia convinha; mas e depois? Em pleno 2014, o que nos faz reforçar maquinalmente as narrativas korda skrabu, sem qualquer questionamento ou contraditório?
O culto obstinado de um passado edénico – em oposição ao seu tratamento como distração literária – é característico das sociedades em disfunção. A população Cabo-verdiana suportou quatro décadas de metamorfoses sociais que a deixaram exaurida; e agora vê-se sub-empregada, sub-educada e sub-capitalizada; não se encontra, certamente, num estado de fortaleza identitária. Neste momento, qualquer aventura social ou conceptual que nos leve para fora da ribeira resulta necessariamente num angst existencial atroz.
A alternativa é o entrincheiramento cultural: a negação ideológica das línguas que não aprendemos a falar, dos livros que temos dificuldade em ler, dos quadros que não sabemos apreciar, dos talheres que não sabemos usar. Atribuímos essa rejeição à rejeição do Outro – ao seu racismo, paternalismo e arrogância – e refugiamo-nos no nosso quintal paroquial, onde a troça que imaginamos no seu rosto não nos poderá alcançar. Neste contexto, as identidades globalmente vitimizadas do negro e do escravo prestam-se lindamente à desculpabilização das nossas falhas – e do nosso ego.
Tragicamente, o terreno da fragilidade identitária é sempre fértil para a demagogia. Na perspetiva de cair no goto do eleitor, o estabelecimento político, eleitoral e cultural reforça as imagens que lhe dão segurança: abaixo o branco que nos escravizou; abaixo o seu descendente que se refastela nas nossas praias; abaixo o empresário ricalhaço que compra o que nós não podemos; abaixo a língua Portuguesa que nos secundariza a maternu; abaixo o profissional que sabe mais do que nós; viva a nossa mediocridade espelhada na TV.