Pela santa Liberdade, contra a herança das guildas

PorExpresso das Ilhas,25 jan 2015 0:00

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O mundo do mercantilismo era dominado pelas corporações e por privilégios concedidos pelo rei.

Era um mundo povoado por regulamentações arbitrárias e por uma peia burocrática que inviabilizava, desde a raiz, o progresso e a livre-iniciativa económica.

O relojoeiro oficial, com o pergaminho do seu poder sem limites, no altar do “despotismo iluminado”, punha e dispunha, dissipava dúvidas, estabelecia quotas, preços e tarifas, criava monopólios, protegia certos sectores da malévola concorrência estrangeira, vigiava a produção, na tentativa de controlar a actividade económica e cobrir a nação de glórias.

A “balança comercial” tinha que ser, nessa economia de pequenos interesses, sempre favorável. O ouro e a prata das colónias não podiam faltar. Controlo: eis a palavra de ordem!

Da França à Inglaterra (onde adquiriu prestígio em meados do séc. XVII, especialmente com as Navigation Acts de 1651, ao arrepio das velhas liberdades inglesas, a “corrente de ouro” tão admirada, mais tarde, por Churchill), passando por Portugal e Rússia, a doutrina mercantilista, meio económica, meio política, teve os seus seguidores e devotos. Até chegar, nos dias que correm, aos manifestantes “antiglobalização”, essa massa informe cuja enorme gritaria, repetindo chavões que a história não confirma, é inversamente proporcional à respectiva inteligência.  

As “manufacturas reais” foram, nesta senda, as precursoras das hodiernas “empresas públicas”, essa eterna fonte de desperdícios, ineficiência e corrupção, às custas, claro, do pobre e depenado contribuinte.

Jean-Baptiste Colbert, o célebre ministro de Luís XIV, foi um génio do mercantilismo e dessa perversa mentalidade burocrática que, ainda hoje, nimbada de processos labirínticos e assaz estatizantes, faz o atraso secular de tantos países africanos e latino-americanos, que não chegaram a conhecer a “ética calvinista” de que falava Weber. (Para um utilíssimo esclarecimento, David Landes, Why Europe and the West? Why not China?, in http://pubs.aeaweb.org/doi/pdfplus/10.1257/jep.20.2.3).

Algumas encíclicas papais, sem o devido cuidado na análise do fenómeno económico, legitimam, contudo, esse entendimento das coisas, com resultados práticos pouco agradáveis.

É o caso da Quadragesimo Anno, editada em Maio de 1931. Numa época particularmente conturbada, na Europa e no mundo inteiro.

Foram os dias, de má memória, de Hitler e Benito Mussolini e desse líder desastroso que foi Neville Chamberlain, incapaz de compreender, na auto-ilusão do seu “pacifismo” inconsequente, a ameaça totalitária então reinante. 

A Constituição portuguesa de 1933, de feição autocrática, defendia o mesmíssimo princípio, visando, como se dizia no respectivo Título VIII, da Parte I, garantir o “…poderio do Estado e a justiça entre os cidadãos”. 

O corporativismo nunca foi, refira-se, um conselho de perfeição.

Decorridos séculos e vencida a velha doutrina, com os seus erros e o seu “bas-fond” retrógrado, tão bem expostos por Adam Smith já em 1776, subsistem, porém, alguns resquícios dos tempos de Colbert e companhia, sob a forma de privilégios e regulamentos injustificados.

Vem tudo isso a propósito do problema da Auto-Regulação das Profissões no âmbito do moderno Estado de direito democrático.

Na Europa, já se assume que as Ordens Profissionais (dos advogados, engenheiros, etc.) constituem um factor de competitividade importante, mormente numa economia de serviços marcada pela procura da eficiência e da qualidade.  

Foi este o motivo de uma recente crónica de Vital Moreira, autor de uma obra científica de referência nesse domínio, no Diário Económico, chamando, aliás, a atenção dos leitores para o atraso na actualização dos Estatutos das ordens profissionais, cujo novo regime jurídico foi publicado em Janeiro de 2013, há precisamente um ano, na sequência dos compromissos assumidos perante a “Troika”.

O novo regime jurídico-legal, segundo Moreira, pretende alcançar três objectivos essenciais: “Reformar a organização e o funcionamento das ordens; salvaguardar os direitos e interesses dos clientes dos serviços profissionais; tornar mais livre e mais concorrencial a prestação dos serviços profissionais organizados em ordens”.

O último ponto, a nosso ver, é decisivo. A sua concretização prática é urgente e inadiável.

A redução das barreiras de acesso à profissão é, nesta senda, o aspecto crucial da novíssima reforma legal em terras lusas.

Ouçamos, em discurso directo, as palavras do conhecido investigador e constitucionalista de Coimbra:

“…o novo regime das ordens reduz consideravelmente as barreiras ao acesso à profissão (proibição de numerus clausus, eliminação de exame de acesso ao estágio e encurtamento da duração do estágio, etc.) e diminui drasticamente as limitações à concorrência na prestação de serviços profissionais, nomeadamente pela liberalização da publicidade, pela proibição de quaisquer decisões colectivas sobre preços, pela admissão de sociedades mistas com não profissionais e de sociedades pluridisciplinares.

As economias modernas assentam cada vez mais nos serviços, sendo estes também essenciais aos demais sectores da economia (agricultura e indústria)”.

É, de facto, uma reforma muito ambiciosa e à altura dos novos e exigentes tempos, quebrando o monopólio de determinados grupos e a defesa acirrada de certos interesses corporativos, mantidos, sub-repticiamente, em nome de um falso “interesse público”.

Quando é que esses temas, de tão alta relevância, serão pelo menos discutidos em Cabo Verde?! Agora? Nunca?

Esperemos que os nossos representantes, eleitos e responsáveis perante o povo, não pratiquem a triste “política de avestruz”, ampliando, pelo comodismo atávico, o nosso atraso relativamente aos países mais avançados. Seria trágico.

Esperemos, enfim, que os bons exemplos, que não só os maus, também sejam seguidos.

PS: Uns apressadinhos, escrevinhando nas redes sociais e quejandos, e dando largas aliás à boçalidade incorrigível, resolveram, à la Chomsky, atribuir as culpas pelo atentado de Paris, perpetrado por certos radicais islâmicos, à maldita “globalização” ou, de qualquer forma, à “exclusão social” de que seriam, ulalá!, vítimas no Ocidente. Ora, esse “argumento” é, no mínimo, patético. Os autores do atentado eram pessoas da classe média e viviam relativamente bem integrados num país, a França, desenvolvido, tolerante e com um grau de conforto bem superior aos países de origem dos pais ou avós desses meninos mimados (pelo generoso welfare State) transmutados em terroristas e demiurgos de uma “nova ordem” política. Na verdade, eles optaram pela via do mal, do ódio psicótico, e são por isso inteiramente responsáveis pelos actos praticados. São filhos de uma liberdade que não souberam usar correctamente, cuspindo no prato que os alimentou. Não se aceita, aqui, qualquer transferência de culpa. A sátira é um direito, e não um crime, em qualquer país civilizado.

 

 

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Autoria:Expresso das Ilhas,25 jan 2015 0:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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