O jornal ASemana publicou há dias um artigo com o seguinte título: ESPECIALISTAS EM POLÍTICA MONETÁRIA QUEREM QUE O BANCO CENTRAL DEIXE DE EMITIR MOEDAS METÁLICAS.
Apesar de longo, o título pode ter chamado a atenção de muita gente não especialista para a leitura do artigo, quanto mais não seja por se tratar de assunto que tem a ver com dinheiro. E muitos terão ficado desapontados pelo simples facto de não verem identificados os tais especialistas. Fica-se por saber se são especialistas de especialidade ou especialistas de lista, a espécie mais abundante em Cabo Verde!
Outros, mais interessados na matéria, não terão ficado menos intrigados com a notícia (?), dado a certas bacoradas técnicas nela contidas, que não ficam nada bem a especialistas.
Mas, antes de assinalar os desacertos da peça, convém lembrar de que há pouco tempo atrás havia saído, no mesmo jornal, um artigo a dar conta dos ganhos que a emissão de moeda proporciona ao emissor (senhoriagem). Caso para se interrogar até que ponto esses artigos não estarão ligados a uma campanha de narcotização mental para a tomada de medidas de duvidosa razoabilidade, com vista a contornar as já perceptíveis dificuldades na angariação de receitas do Estado?
O primeiro grande desacerto tem a ver com a razão principal apresentada para sustentar a peregrina ideia de se transferir a emissão de moedas metálicas (moedas de trocos) do Banco Central para o Tesouro, ou seja, do Banco de Cabo Verde para o Governo: “diversificar as receitas do Estado de base não tributária… nestes tempos de vacas magras, quando o Tesouro precisa de mais fundos, mormente num ano complicado devido ao mau ano agrícola e à situação de calamidade natural registada em Chã das Caldeiras, na sequência da erupção do Pico do Fogo.”
E a minha primeira indignação espelha-se na seguinte exclamação: que casta de especialistas em política monetária é essa que se preocupa em apresentar uma proposta de alteração do processo de emissão de moeda apenas com o fito de aumentar as receitas do Estado?! E quando essa proposta implicaria a alteração da Constituição da República que, no seu artigo 92º, atribui a exclusividade da emissão de moeda ao Banco de Cabo Verde!
Estranho, porque um especialista em política monetária tem a obrigação de conhecer os desenvolvimentos teóricos nesta matéria que levaram à posição, tida hoje como sendo consensual a nível mundial, de que o objectivo principal da política monetária deve ser a estabilidade de preços, posição essa absorvida por Cabo Verde há já algum tempo e estabelecida na Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde! Ligar a emissão monetária à angariação de receitas do Estado é uma ideia anacrónica, significando um retrocesso de todo inadmissível.
O segundo grande desacerto tem a ver com a ideia de se estar a propor uma nova via de angariação de receitas para o Estado, esquecendo-se os tais “especialistas” de que o Banco Central, actual emissor de moeda, é uma instituição do Estado cujo saldo do resultado líquido é obrigatoriamente transferido para o Estado (artigo 57º nº 6. da Lei Orgânica do BCV)! A diferença consiste no facto de os resultados do Banco de Cabo Verde não derivarem de acções orientadas para a obtenção de receitas mas, sim, de execução da política monetária, contrariamente à alegada proposta dos “especialistas”.
O terceiro grande desacerto encontra-se no argumento de que “em muitos países, a emissão da moeda metálica – constituída por moedas correntes e comemorativas - compete ao departamento governamental responsável pelas Finanças” através das Casas da Moeda. Esquecem-se os “especialistas” de que os tais países têm uma longa história no respeitante a emissão de moeda e que as tais Casas da Moeda vêm do tempo em que a emissão era determinada pelo poder executivo e com objectivos bem diferentes. Com a evolução teórica a recomendar a autonomia dos Bancos Centrais, os países que tinham Casas da Moeda mantiveram-nas na cunhagem de moedas mas com emissão controlada pela autoridade monetária e não pelo Governo, e jamais com o fito de angariar receitas para o Estado.
O quarto grande desacerto é o mais disparatado: “que a cunhagem das moedas correntes e comemorativas seja atribuída à Imprensa Nacional, que deve ser transformada numa Casa da Moeda.” Ideia estapafúrdia essa de ligar uma proposta de alteração do processo de emissão de moeda com a necessidade de viabilizar economicamente a Imprensa Nacional! Estarão os “especialistas” cientes dos investimentos em equipamentos e tecnologia que seriam necessários para o efeito? Estarão os “especialistas” convencidos de que os ganhos de emissão de moedas metálicas em Cabo Verde são tão significativos, quando se sabe que a nossa dimensão está longe da dos tais países que têm Casa da Moeda, e quando se sabe também que a senhoriagem (ganhos pela diferença entre o valor e o custo da moeda emitida) é muito menos expressiva com as moedas de trocos do que com as notas?
Ainda com aquela música do Racordai nos ouvidos, pergunto: Senhoriagem do Senhor ou da Senhora?