Recantos da minha terra: São Lourenço dos Órgãos(II)

PorExpresso das Ilhas,23 mar 2015 11:44

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É no abrigo deste monte (Pico d’Antónia) que São Lourenço encontra arrimo e aconchego para se impor como um dos poiais mais auspiciosos e fascinantes de Cabo Verde. Assim, no seguimento de cruzada, sinto-me a escrever uma crónica sobre este novel concelho do país. E o leitor perguntará «mas que tem este sujeito a ver com São Lourenço dos Órgãos?». Ao que respondo «tudo. Tudo. A começar pelo meu bisavô que fez ali na lendária escola primária local a sua distinta quarta-classe». Estamos a falar de um facto ocorrido no final do século XIX. Depois, a paixão por múltiplas e diversas iguarias, como adiante se vai ver, leva-me a cultivar este terreno.

São Lourenço dos Órgãos foi a um tempo rancho de cobiça para aspirantes a aristocratas rurais e uma estância de eleição para o repouso de “brancos de terra”, desavindos com a nomenclatura do poder despótico estabelecido no auge da então da Cidade Velha. Bem, isso são “contas para outro rosário”. A par do Liceu da Praia e do Seminário de São José, que ministravam e ministram formação académica e teórica, São Jorge dos Órgãos, uma espécie de cova-de-mão doirada de São Lourenço, aparece associado ao nascimento da primeira leva de quadros-técnicos cabo-verdianos, os tais desassombrados capatazes agrícolas, que, vindos de todas as ilhas, para lá se dirigiam e eram formados, na década de sessenta e algum tanto de setenta.

De acordo com a minha agenda São Domingos terá o seu dia de crónica, com toda a dedicação que me couber, mas é quase impossível falar de São Lourenço dos Órgãos sem fazer uma breve incursão a esse território vizinho. Juntos e unidos tão indissoluvelmente pelo cordão umbilical de importância histórica, e por duas ordens de factores: entre esses dois povoados havia um tipo de crescente-fértil dos anos sessenta e primeira metade da década de setenta, em matéria de ensino, educação e ciência, aquilo a que nós podemos chamar embrião da «intelectualidade prática» da ilha de Santiago, ao dispor de um Cabo Verde, que dentro de pouco haveria de ser independente.

É o tão almejado “savoir fair” de que tanto se fala. A Escola de formação agrária, em São Jorge, a Escola de Formação de Professores no Variante, a par da famosa oficina auto ali instalada foram determinantes para o sucesso que o país tem vindo a ter, mormente em matéria da educação, do ensino e da ciência. Eles foram nessa altura fautores de democratização do ensino profissional e de mobilidade social na ilha de Santiago. Quem não se lembra dos aprumados professores de Variante e dos vigorosos capatazes agrícolas de São Jorge? Essas duas categorias profissionais inundaram a ilha de luz e deram-lhe um novo elã para encarar o futuro. Num caso e noutro havia notável ascensão social, que era patente nas suas elegantes motorizadas. E que aos olhos da época eram o charmoso prado da actualidade.

O cultivo da ciência e da técnica levado a cabo por São Jorge está na base do ensino superior agora existente em Cabo Verde, nos domínios de agricultura e do ambiente. Trata-se de uma Escola de grande tradição e prestígio, vocacionada para o estudo das características do solo e da selecção de animais e plantas, que melhor se adaptem às características do nosso clima. E tudo isto acontece sob as asas protectoras de Pico d’Antónia. Ladeado de São Salvador do mundo, São Domingos e Santa Cruz, São Lourenço dos Órgãos é um recôndito de sonho que dá ares de frescura e de deidade, algo raro no contexto deste arquipélago, parco em matéria de vida animal e vegetal. Não foi por acaso que ali existia a emblemática Pousada de Sossego dos idos anos 80/90. É um espaço ideal para repousar e retemperar intuito criativo de homens e mulheres ligados às coisas de espírito. Equiparável a São Lourenço só mesmo zonas altas dos Mosteiros na ilha do Fogo.

Por isso existe uma forte demanda de terrenos da parte da burguesia capitalina, para ali edificar uma segunda residência de família, fugindo assim à azáfama da cidade da Praia, sobretudo nos fins-de-semana. Algumas gratas personas da nossa Cidade descobriram há muito um paraíso chamado São Lourenço dos Órgãos. Estou a lembrar-me, por exemplo, do escritor António Ludgero Correia, do meu amigo e compadre Albino Tavares e do Sr. Amarildo, só para citar alguns fãs do referido. Eu próprio se pudesse já lá estava. O local é uma espécie de montra do melhor que há no país: paisagem salutar e cativante, a aura é magnífica, com gente de cândidas maneiras e de deleitável morabeza, além de outras preciosidades. Há uma cumplicidade entre o ambiente rural e urbano. Estando a meio caminho entre Praia e Assomada, dois maiores centros da ilha de Santiago, quem decida pelos Órgãos está no epicentro de uma virtude irrefutável.

A capital João Teves é uma cidade alevantada pelo punho de um decreto, à semelhança de outras que foram promovidas à mesma categoria. Se calhar não precisassem desse empurrão apressado e escorregadio do poder público, torcendo braço à natural desenvoltura da povoação. Não obstante haver algumas urbes noutras paragens que nasceram assim e foram descobrindo seu contorno, ganhando seu figurino e seguindo a sua trajectória ascendente (Washintgon, Abuja, Brasília e talvez Bissau). O que importa é investir massivamente nelas até terem o cabedal correspondente ao nome que lhes foi dado e porem-se à altura das pessoas que ali residem.

A putativa encantação das ninfas de São Lourenço já vem de longe. A localidade foi já cantada e retratada pelos melhores trovadores da nossa terra, enaltecendo os atributos de suas esbeltas e formosas raparigas. Há quem diga que ali existiu um escol de belíssimas donzelas, de finíssimo recorte e de assombrosos e melódicos cânticos, algo só comparável à escolta predilecta de um Apolo. Bem, isto pode ser exercício de mero deleite de espírito, mas não deixa de parecer grato a quem sustente a alma de relíquias e prodígios do passado, sobretudo a quem pegue em arquétipos de ponta para montar e tecer a sua gesta com fabulosas e ornamentadas armaduras, fazendo a ponte entre o real e o imaginário, o óptimo vidente e o modesto real dos dias de cada criatura. É pois na pele de todos e de cada um que reside a mística essencial do ofício e do papel da mediação da arte.

As memórias de São Lourenço dos Órgãos chegam-me cedo e chegam-me bem, porque dos olhos da minha inteira meninice. E batem-me no peito como a brisa da montanha de Tessália. Tinha eu quatro ou cinco anos de idade, apanhei uma queda, nos arredores de Covada, em São Miguel, fracturei uma perna, a esquerda que ainda hoje se mantém assim, assim. Levado ao antigo simulacro da então cabeça-de-província de Cabo Verde, o actual Hospital Central da Praia, fui cair nas mãos de uma divinal figura humana, uma extraordinária profissional e uma enfermeira de excepção, com um talento destacadamente superior a todos que conheço até ao momento. Ali seria tratado e acarinhado, durante meses.

A enfermeira Filomena era um decalque de decote angelical. Tinha tudo que uma deusa aspira ter: abundante pulcritude, elevada estatura física, vigorosa polidez, rebuscada fisionomia, abençoada feição de modos, impoluta compaixão e venerável silhueta de mulher. A sombra dela era mais bonita que todas as delícias do arquipélago daquele tempo juntas. Ademais era paciente, meiga, de voz clara e suave, invejavelmente escorreita e denodadamente pronunciada. Detentora de um portentoso e demolidor sorriso, com um poder de sedução capaz de deitar a baixo o mais caprichoso e rígido carácter do ser humano. Nem o próprio troglodita Senaqueribe da antiga Assíria teria coragem de resistir às qualidades persuasivas da minha musa. E donde era essa requintíssima preciosidade? De Covada de São Lourenço, o homónimo do meu cutelo de nascença.

De vez em quando olhava para mim e provocava o rapaz de São Miguel «João Baptista, moras tu onde?», perguntava-me ela, a sorrir terna e calidamente. Eu, insistentemente, respondia “La labada”. Ao que a Mena reagia cheia de risos, porque, sendo natural dos Órgãos, conhecia as duas localidades e sabia que eu estava a meter água, ao tomar Covada por “Labada”. Essa cena repetiu-se vezes sem conta. Então, sempre que ela chegava de manhã e mesmo antes de se dirigir aos aposentos do pessoal médico, fazia questão de passar pela minha cama «Bom dia! João Baptista, onde tu moras?», saudava-me ela, seguida de provocação, naquela voz açucarada e lívida. Eu respondia “La Labada”, como de costume e depois ficava em chamas. Emborcava para dentro de mim uns solilóquios, que ela jamais ouviu. E o leitor, por enquanto, também não (continua).

 

*Ao serviço de João Baptista Efígie

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Autoria:Expresso das Ilhas,23 mar 2015 11:44

Editado porRendy Santos  em  23 mar 2015 11:56

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