Cerca do ano de 1420, um barco ou junco [vindo] da India numa travessia sem escalas do Oceano Indico passou pelas Ilhas de Homens e de Mulheres e ultrapassou o Cap de Diab [Cabo de Boa Esperança] continuando até a Isola Verde e as ilhas obscuras [ou escuridão] em direção a oeste e sudoeste durante 40 dias e apenas encontrou mar e céu. (...)
A citação foi retirada do livro de Garvin Menzies “1421 – o ano em que a China descobriu o mundo” e refere-se a umas notas encontradas num mapa-múndi desenhado em 1459 por Fra Mauro, um cartógrafo que vivia na Laguna de Veneza e que trabalhou para D. Pedro, o irmão do Infante D. Henrique de Portugal. Segundo Menzies, o referido mapa encontra-se na Biblioteca Nazionale Marciana em Veneza. O autor declara que neste mapa o Cabo da Boa Esperança (Cap de Diab) tinha sido correctamente desenhado trinta anos antes de Bartolomeu Dias o ter dobrado. Para além disso, afirma que esse tem desenhado um junco chinês com proa quadrada, que Menzies diz ser a forma típica dos barcos da grande armada chinesa chefiada pelo almirante chinês Zheng He. Há ainda referências no mapa ao tamanho enorme desses navios, que possuíam 4 mastros ou mais, e ainda aos enormes ovos de pássaros gigantes que a tripulação terá encontrado e que correspondem à descrição das avestruzes dessa região.
Mas então o que tudo isso tem a ver com Cabo Verde?
Menzies explica que a frota chinesa, depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança, terá seguido para Norte acompanhando as correntes e os ventos dominantes. Esses enormes navios tinham um fundo chato e navegavam a favor das correntes e dos ventos, porque ainda não se tinha desenvolvido o sistema de navegação à vela com vento contra, razão porque não chegaram à Europa.
Aqui entram as descrições de um jovem veneziano, Niccolo da Conti, que se converteu ao islamismo, casou-se com uma muçulmana e tornou-se um bem-sucedido comerciante árabe baseado em Alexandria. Segundo o autor, da Conti estava em Calecute, capital de Kerala, no sul da Índia, o porto mais importante do Índico, na altura em que a armada chinesa lá passou, tendo embarcado e seguido viagem com eles. Uns anos mais tarde, como penitência por ter renunciado ao cristianismo, da Conti terá sido condenado pelo Papa Eugénio IV a relatar a história das suas viagens ao secretário papal Poggio Bracciolini, que, segundo Menzies, as terá publicado.
Nessas descrições é que aparece a “Isola Verde”. Usando os seus conhecimentos de oficial da marinha, Menzies mostra como os juncos chineses terão sido levados pelos ventos e correntes para Norte até chegarem aonde hoje é Dakar, capital do Senegal. Aqui os ventos alísios terão empurrado a frota para sudoeste na direcção das ilhas de Cabo Verde, ilhas que iriam ser fundamentais na descoberta de Menzies do mistério das viagens chinesas.
Com os alísios, a aproximação terá sido feita por nordeste, pelo que terão chegado primeiro ao Norte da ilha de Santo Antão. Aqui o autor faz uma exaustiva descrição da ilha e das suas majestosas montanhas. Mas o mais interessante é que ele descreve a sua própria vinda a Santo Antão à procura de alguma pedra inscrita que os descobridores de Cabo Verde, António da Noli, Cà da Mosto e Diogo Afonso encontraram no local, o que o levou ao vale de Janela e à Pedra do Letreiro que ainda hoje está lá.
Menzies conta que, com autorização das autoridades cabo-verdianas, removeu alguns líquenes que cobriam a pedra e descobriu uma caligrafia antiga que nenhum especialista tinha conseguido decifrar ainda. Enviou fotografias para especialistas da China, mas foi da Índia que veio uma resposta afirmativa. Os caracteres são da língua malaiala, hoje em desuso, mas que era a língua usada em Kerala, cuja capital em 1421 era Calecute, o porto de onde a armada chinesa partiu, trazendo a bordo intérpretes treinados na Escola de Línguas de Nanquim, e que falavam cerca de 17 línguas da Ásia e de África.
Dando saltos de contente (como o próprio comenta no livro), o autor sentiu-se encorajado a prosseguir as suas investigações. Procurou nas publicações de especialistas se havia outras pedras semelhantes, tendo descoberto que havia outra no Congo, e noutros locais como Cochim e Calecute na Índia, e perto de Galle no Sri Lanka.
Convém referir que esse hábito de escrever em pedras bem localizadas era uma forma que os chineses utilizavam para assinalar os locais por onde passavam.
De Santo Antão, a “Isola Verde”, o autor leva-nos a uma fabulosa viagem que a armada terá feito, tendo atravessado o Atlântico empurrada pela corrente e os ventos alísios. Uma parte da frota, comandada pelo almirante Zhou Wen, terá seguido para norte, explorando as Caraíbas e parte da América do Norte, até à zona de Rhode Island. Aqui abre-se um parêntesis interessante para dizer que em 1524 o explorador veneziano Giovanni de Verrazano chegou a esta região e descreveu os povos primitivos que encontrou, entre os quais se encontravam mulheres elegantes de cor amarela, vestidas e penteadas ao estilo oriental e com modos educados. Parte desta esquadra terá chegado aos Açores, depois subido para a Gronelândia e terá regressado à China navegando pelo estreito de Bering.
Uma outra, comandada pelos almirantes Zhou Man e Hong Bao, terá seguido para o sul, chegado ao Brasil e entrado pelo Estreito de Magalhães, seguindo depois para as ilhas Falkland. Nesse ponto esta armada dividiu-se em duas. Hong Bao terá feito uma travessia que o levou à Antártida, depois à Austrália e à Nova Zelândia, regressando daí para a China a 22 de Outubro de 1423. Já Zhou Man terá cartografado toda a costa ocidental da América do Sul e do Norte e depois terá atravessado o Pacífico até atingir a Austrália, regressando depois à China a 8 de Outubro de 1423. O autor apresenta o que considera inúmeras evidências de que a esquadra de Zhou Man terá deixado colónias, que se estabeleceram nas zonas do que são hoje a Califórnia, a Venezuela, o México e o Peru, e que se terão misturado com as tribos locais a quem ensinaram diversas artes, o que faz com que existam grandes semelhanças entre hábitos e costumes dessas regiões do centro e do Sul da América e as do Sudoeste Asiático. As semelhanças estão nas diversas provas citadas – destroços de juncos afundados, grupos sanguíneos, arquitetura, pintura, costumes, vestuário, línguas, tinturaria, etc.
Outra evidência é o milho que a frota terá trazido da América do Sul, de onde é originário, e que os europeus encontraram na Ásia quando lá chegaram pela primeira vez.
Uma das provas destas viagens são as inscrições que o próprio Zheng He fez em duas pedras erguidas em 1431 em dois dos palácios da Esposa Celestial, uma deusa taoista. Nelas, o almirante já caído em desgraça fala nas 7 viagens feitas com mais de 100 navios com milhares de soldados e de terem percorrido milhares de países habitados por povos bárbaros.
Como foi possível que tantos feitos tenham desaparecido dos anais da História? A explicação começa no dia 9 de Maio de 1421, dois meses depois da partida da armada de Zheng He: uma violenta tempestade rebentou sobre a Cidade Proibida e um raio atingiu o palácio que o ambicioso Imperador Zhu Di tinha acabado de construir, deflagrando um enorme incêndio que destruiu o palácio e matou a sua concubina preferida. Segundo relatos da época, o imperador ficou tão abatido que entregou o poder temporariamente ao seu filho Zhu Gaozhi. Nessa altura, os imperadores chineses tinham a crença que governavam por instrução divina. Seguiram-se alguns infortúnios, com epidemias que mataram centenas de milhares de pessoas. Outro factor teve a ver com os enormes sacrifícios a que o país tinha sido sujeito para construir as armadas e construir a Cidade Proibida, esta, de repente, reduzida a cinzas. Os mandarins, que sempre tinham criticado os gastos excessivos do Imperador, começaram a influenciar o seu filho Zhu Gaozhi. As revoltas no império começaram a suceder-se e Zhu Di acabou mesmo por morrer durante uma tentativa frustrada de invadir a Mongólia, que se tinha entretanto recusado a pagar tributo.
A 7 de Setembro de 1424, Zhu Gaozhi, o filho mais velho, subiu ao trono, mandando nesse mesmo dia publicar um édito que punha termo a todas as viagens dos “barcos do tesouro”, obrigando todas as frotas a regressarem e enviando de volta aos seus países os embaixadores estrangeiros. Zhu Gaozhi é descrito como um rapaz gordo, estudioso e religioso, que nunca se interessou pelas expedições militares do pai.
Quando os navios que restavam da grande armada regressaram à China, dois anos e meio depois de terem partido, os almirantes estavam à espera de serem recebidos com glória, mas foram desprezados pelos novos governantes da China. Só Zheng He foi relativamente poupado, tendo sido reformado como mestre de porto em Nanquim.
A partir de 1425, foram proibidas todas as trocas comerciais com o estrangeiro. Qualquer mercador que o fizesse seria julgado como pirata e executado. Durante algum tempo até a aprendizagem de línguas estrangeiras foi suspensa.
O embargo do comércio marítimo foi mantido durante os 100 anos seguintes. A dinastia Qing que veio a seguir foi mais longe: em 1644 mandaram queimar uma fatia de terra com 700 milhas de comprimento e 30 de largura, obrigando as populações a ir para o interior para evitar qualquer comércio com o exterior. Os estaleiros foram desactivados, os planos de construção dos navios e os diários de bordo destruídos.
O livro de Garvin Menzies tem quase 400 páginas de uma leitura prazerosa, que recomendo. Apesar das muitas evidências apresentadas, o autor foi muito contestado a nível mundial, por historiadores e outros académicos, o que não admira. Um inglês afirmar que a Nova Inglaterra nos EUA deveria ser chamada de Nova China é procurar inimigos entre os seus.
A História que nos é contada é totalmente eurocêntrica e ocidental, apesar das suas contradições. Desde adolescente que li que o viking Leif Ericsson chegou à América 5 séculos antes de Cristóvão Colombo, o qual, no entanto, continua a ser o grande “descobridor” das Américas. Aprendi no liceu que os Fenícios navegaram à volta de África 2.000 anos antes dos “descobridores” portugueses. Segundo relatos dos primeiros portugueses que chegaram à África Oriental, os reis e rainhas de Zanzibar e Pemba (actual Moçambique) vestiam ricas sedas chinesas e viviam em casas de pedra decoradas com porcelanas chinesas.
O autor afirma que quando Cook regressou da sua viagem, reivindicando ter descoberto a Austrália, o chefe do departamento de Mapas do Almirantado Britânico, Capitão Dalrymple, terá escrito um protesto furioso, pois o Almirantado já possuía mapas desenhados 250 anos antes que mostravam a Austrália.
Compreende-se que contestar a História dos [Re]Descobrimentos seria uma hecatombe a todos os níveis: carreiras académicas e uma verdadeira indústria comercial do conhecimento seriam postas em causa, para além de questões dos foros social, psicológico e político.
No que nos tange, Cabo Verde e a Pedra do Letreiro estão no centro desta investigação. Não nos cabe nesta crónica tomar partido nesta polémica, tarefa para especialistas. Mas a Pedra do Letreiro pode ser um valioso atractivo turístico, enriquecendo a lista dos produtos turísticos daquela que é, para mim, a mais bonita das ilhas de Cabo Verde.
A Europa e outros continentes vendem-nos como produtos turísticos lendas e mitos, que compramos sem duvidar. Alguém já pediu aos italianos para provarem que Rómulo e Remo, os fundadores de Roma, foram realmente amamentados por uma loba?