“Vocês riem de mim por eu ser diferente, e eu rio de vocês por serem todos iguais”
No passado dia 11 de Maio deste ano de 2016, completaram-se 35 anos desde que Bob Marley, um ícone musical, nos deixou. Por todo o mundo, milhões de pessoas continuam a celebrar com respeito, admiração e nostalgia a vida e a obra deste poeta, músico, cantor e activista, que nasceu na Jamaica e se tornou o ídolo dos povos que buscam a sua afirmação, dos índios do México ao povo Maori da Nova Zelândia, para quem o dia 11 de Maio é um dia de afirmação e resistência.
Bob foi o artista que entusiasmou e encantou a minha geração, que teve o privilégio de ouvir os seus discos ainda em vida do artista.
Quais serão as razões do sucesso global e intemporal deste crioulo, vindo de uma pequena ilha do então Terceiro Mundo?
Vamos viajar um pouco até à ilha da Jamaica e tentar responder a esta e a outras perguntas.
Robert Nesta Marley nasceu na ilha da Jamaica a 6 de Fevereiro de 1945, ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial, num momento em que a paz que ele tanto pregou voltava ao convívio deste planeta.
Bob Marley era filho de mãe negra e pai branco, segundo aprendemos. A mãe, Cedella Malcolm Booker, descendente de escravos de origem africana, e o pai, Norval Sinclair Marley, descendente das famílias proprietárias desses mesmos escravos e das terras onde eram forçados a trabalhar.
Bob personifica a história dos crioulos deste mundo. É esse o padrão que deu origem à maioria dos milhões de crioulos fruto dessas relações tão humanamente compreensíveis quanto proibidas pelos preconceitos raciais. No caso de Bob, o pai casou-se efectivamente com a mãe, apesar das diferenças raciais, sociais e de idade. Norval era capitão dos “Royal Marines” e Cedella era uma jovem pobre do interior da Jamaica.
Aprendemos, contudo, que Bob era filho de uma jamaicana e de um capitão “inglês”. Há aqui uma imprecisão factual histórica, que provavelmente não será inocente, isto porque Norval Marley era jamaicano, se considerarmos que todos os que nascem na Jamaica são jamaicanos.
E Norval Marley nasceu na Jamaica, descendente de uma família jamaicana, cujas origens inglesas e judias vinham da região de Sussex, na Inglaterra.
Aqui apetece perguntar: quem chegou primeiro à Jamaica? Quem teve a iniciativa de aí se estabelecer e levar outros povos para formar a nação hoje conhecida como jamaicana?
Porquê então essa ideia preconcebida de que os jamaicanos brancos ou de pele clara são ingleses? Esta forma preconceituosa de dividir as populações crioulas não é exclusiva da Jamaica, como podemos comprovar aqui mesmo em Cabo Verde. Um cabo-verdiano muito claro ou branco é logo confundido com “estrangeiro” ou “europeu”, quando na verdade os primeiros habitantes conhecidos destas ilhas eram de pele clara. Mais uma das incongruências da nossa crise identitária.
“Meu pai é branco e a minha mãe é negra. Agora chamam-me de mestiço ou o que quer que seja. Bem, eu não estou do lado de ninguém, não estou do lado dos negros nem dos brancos, eu estou do lado de Deus que me criou e que me fez nascer de uma negra e de um branco.”
Palavras sábias de um homem sábio.
Bob foi grande, e apreciado no mundo inteiro, também por isso.
Se enquadrarmos esta sábia reflexão em termos temporais, no tempo do exacerbado e, na altura, compreensível, despontar do africanismo ideológico e de conceitos como a negritude, mais ainda se revela a inteligência deste líder carismático (que nunca o quis ser).
Sobretudo, se atendermos ao facto de Bob ser filho de mãe negra e ter crescido num bairro (gueto) negro, pobre e abandonado da Jamaica, e de ter sido rejeitado tanto pela família da mãe, por ser mestiço, como pela família do pai, o que lhe poderia ter criado preconceitos e sentimentos revanchistas.
“Todos caem mas apenas os fracos continuam no chão...”
Mas Bob não era assim, estava acima das guerrilhas humanas, causadoras de tanto sofrimento, esse mesmo sofrimento que ele quis ajudar a debelar com a sua arma, a música.
A sua mensagem sempre foi peace and love, que ele mesmo praticava através do culto do rastafarismo.
“Se Deus criou as pessoas para amar e as coisas para cuidar, por que amamos as coisas e usamos as pessoas?”
Bob não era contra ninguém, era a favor de todos enquanto seres humanos nascidos iguais perante Deus.
Os grandes homens são assim, não se deixam levar por ideologias contemporâneas e circunstanciais. Conseguem ver a floresta e não somente a árvore que lhes aparece à frente. E são por isso mesmo intemporais e apreciados através dos tempos, não passam de moda.
As músicas de Bob e, sobretudo, as suas letras são actuais e continuam a inspirar gerações, independentemente das culturas, raças e religiões.
Bob não pertencia a nenhuma facção étnica, era um crioulo de corpo e alma e comportava-se como tal.
Desposou uma jamaicana negra, da mesma forma que namorou, ao mesmo tempo, uma bonita mulher jamaicana branca que chegou a ser Miss Mundo, o que na altura catapultou o ainda pouco conhecido Bob Marley para as primeiras páginas dos jornais.
O crioulo bem-parecido que encantava as mulheres por ser tímido, apesar de famoso, e que cantava No woman no cry e Is this Love, teve filhos com 7 mulheres, uma das quais sua legítima esposa, Rita Marley, numa curta vida que durou apenas 36 anos. Até na socialmente denominada “promiscuidade”, Bob era profundamente crioulo.
A este propósito, é elucidativa a reacção da sua advogada, ela própria uma crioula jamaicana, quando lhe perguntaram numa entrevista se Bob Marley era fiel. A resposta: “Com Jah? Sim, era fiel a Jah. A uma única mulher? Não. Porquê? Ele tinha dona? O que é fidelidade? É uma ideologia ocidental. Um anel no dedo, uma argola no nariz? Isso é para os homens ocidentais que só conseguem ter uma mulher de cada vez”, rematando com um sorriso maroto e trocista – “Bob podia ter mais do que uma”!
Seria injusto não mencionar que se Bob foi um grande homem, teve a sorte de ter ao seu lado uma extraordinária, sábia e incomparável mulher, Rita Marley. Quando questionada sobre se as infidelidades do marido não a incomodavam, respondia a sorrir que assumiu um papel muito acima de esposa, tinha consciência de que era o anjo da guarda de um mensageiro. Alguém que atire a primeira pedra a esta personagem que esteve à altura dos acontecimentos…
Apesar de sonhar com África, foi na Europa que Bob escolheu refugiar-se e viver depois de abandonar a Jamaica, desgostoso com a violência política existente e da qual foi alvo, tendo sido alvejado em sua casa juntamente com a esposa Rita.
Participou no acto da independência do Zimbabwe, um país que ele ajudou a libertar através da célebre música “Zimbabwe”, mas hoje estaria certamente desiludido e envergonhado com o que os “libertadores” africanos fizeram com os seus próprios países. O poeta da liberdade, que cantou Get up, stand up, stand up for your rights, estaria hoje certamente enojado com as ditaduras africanas e de outras paragens.
Bob nunca guardou rancor dos seus parentes brancos a quem chegou a pedir ajuda, tendo sido rejeitada com a justificação de que não sabiam da sua existência.
A esse propósito, escreveu I am the stone that the builder refused, numa ironia ao facto de a sua família ser dona de uma grande empresa construtora da Jamaica. No fim, como profetizou nessa música, o Marley pobre dos guetos é que levou o nome da família Marley além-fronteiras, votando os seus parentes ricos para segundo plano.
Ironia do destino, até na morte Bob foi vítima da sua crioulidade mestiça – morreu de um melanoma, um cancro típico de pessoas de etnia caucasiana.
“Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida.”
A análise desprovida de paixão que podemos fazer deste grande poeta e músico só pode aumentar a nossa admiração pelo homem tímido e sensível que se escondia atrás do artista global.
Um crioulo que orgulha a nação crioula e que morreu no auge de uma carreira cujos limites seriam os céus. O seu álbum Exodus, de 1977, foi considerado o álbum do século pela revista Time, e a canção One Love, a música do milénio, pela BBC.
Ser filho de pai branco e mãe negra sem dúvida fez com que tanto negros, mestiços e brancos se reconhecessem na sua figura e na sua história. Este é um dos grandes activos da identidade crioula, até agora muito pouco explorado pelos crioulos deste mundo, ainda perdidos em batalhas ideológicas de negritudes, africanismos, ocidentalismos, que no seio de sociedades crioulas só podem ser considerados disparates!
Neste tempo de renascimento de ideologias belicosas e perigosas, seria bom que o exemplo de tolerância que Bob Marley espalhou guiasse e iluminasse os tortuosos caminhos que insistimos em trilhar.
Que celebremos para sempre o pensamento do poeta que dizia que não tinha nenhuma ambição pessoal, a não ser ver a Humanidade a viver em paz e harmonia.
One Love! One heart! Let’s get together and feel all right…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 755 de 18 de Maio de 2016.