ESQUINA DO TEMPO: O rito do Guarda-Cabeça

PorExpresso das Ilhas,30 mai 2016 6:00

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Para as minhas netas Liana, Nicole e Aliyah, nascidas na terra-longe.

 

No creo en brujas, pero que las hay, las hay.

– Provérbio Espanhol

 

Tradicionalmente as crianças em Cabo Verde nasciam em casa com a ajuda das parteiras curiosas que, logo após o nascimento, prendiam-lhes ao pescoço um cordel com “contas de quebranto” e outros amuletos dentro de um saquinho (“guarda”) e as banhavam numa infusão de ervas aromáticas contra o “mau-olhado”.

 

A placenta era levada para ser enterrada num local escondido, com a "boca" para cima para que o recém-nascido não apanhasse “frieza” (resfriado), bem como o cordão umbilical, para o ligar à terra.

 

O umbigo era curado com tabaco moído, pó fino que se forma nos beirais das casas ou colhido do casulo de certos insectos e mesmo com cal tirada da parede.

 

Este pó estaria contaminado por micróbios, pelo que acontecia que muitos recém-nascidos sofriam de infecção do coto umbilical, que se manifestava nos primeiros sete dias, e morriam.

 

Na verdade, essa infecção do coto umbilical ou tétano neonatal, em linguagem técnica, ocorria devido à má higiene e ferrugem no instrumento de corte (tesoura) na hora de separar o recém-nascido da mãe e devido aos produtos utilizados na cicatrização.

 

Cria-se, por outro lado, que se o coto umbilical não fosse mantido limpo, as bruxas podiam vir para sugar o sangue da criança. Daí a prática da família velar o recém-nascido durante esses dias críticos, mas principalmente no sétimo.

 

Após o nascimento do bebé, a superstição exigia realizar uma cerimónia contra o “mau-olhado” na noite do sexto para o sétimo dia. Assim, familiares e amigos sentavam-se durante toda a noite a tocar e a cantar para afugentar as bruxas.

 

A cerimónia realizava-se à meia-noite com todas as pessoas reunidas em casa à volta do recém-nascido, com destaque para a madrinha, o padrinho e a pessoa que faz a oração.

 

Começavam por colocar uma agulha e uma tesoura aberta debaixo do travesseiro. Estando o bebé nos braços da madrinha, com o padrinho segurando uma vela acesa e os pais um copo de água, iniciava-se a oração “Pai Nosso”, “Ave-Maria” e “Credo”.

 

Terminada a oração, derramavam a água na cabeça do recém-nascido e pediam aos pais para lhe tocar na cabeça a fim de o bebé receber a bênção de Deus. A seguir todos entoavam cânticos para afugentar as bruxas.

 

O Poeta Eugénio Tavares (Brava, 1867-1930) compôs a morna “Ná, Ó Menino ná…”, para esconjurar o mal, a sombra ruim, nessa noite de guarda-cabeça (do recém-nascido) – Ná, ó menino ná, / Sombra rum fugi de li! / Ná, ô menino ná, / Dixa nha fidjo dormi…

 

Tenha-se presente que, embora os conceitos de "bruxa" e "feiticeira" sejam usados entre nós como sinónimo, na essência não são a mesma coisa.

 

Em Santiago usa-se o primeiro termo para se referir à pessoa que nasce com rabo e com poderes, geralmente para fazer o mal, que lança “mau-olhado” que pode causar o definhamento e a morte, principalmente da criança, enquanto o segundo termo é empregue para a pessoa que é dotada de poderes mágicos, quer para fins benéficos quer maléficos.

 

Em Santo Antão e, por extensão, São Vicente, o termo usado é feiticeira, com o mesmo sentido de bruxa em Santiago. Contudo, para Manuel Bonaparte Figueira (1968), “o bruxo é uma classe evoluída de feiticeiros”, inclusivamente com o dom de adivinhação.

 

Recorda-se, a propósito, a estória narrada por Bonaparte Figueira e que deu origem à morna "Papá Joquim Paris” – Futchera de Rbêra de Janela / Tá c'mê na got / Tá c'mé na catchorre / Cantamá que pás cá c'mé / Nha Fernandinho di meu, nha primero amor.

 

O esconjuro às bruxas é feito da seguinte forma: "Fisga canhota, tosca marosca, mar de Espanha, bordolega, barba de góte prete. Cabéça pa mar, róbe pa terra. Bá fundiá na Stótcha pa mo ei bô N t' entrá!"

 

O Crioulo, que é genial em arranjar pretextos para tomar um cacocomer umas bafas e fazer uma tocatina, não abre mão desse costume e da sua tradicional noite-de-sete ou de guarda-cabeça (do recém-nascido) para fazer uma festa onde se toca e se dança pela noite fora, não faltando a canja de galinha e o grogue.

 

Não é que acreditemos nas bruxas, mas que elas existem, existem!

 

Ultimamente, quando já ninguém se lembra desses perigos do antigamente, tem surgido entre nós um novo fenómeno, organizar um “Chá de Bebé”, uma importação do Brasil e dos Estados Unidos cujo objetivo principal é proporcionar um apoio emocional dos amigos à futura mamãe e presenteá-la com os itens que ainda faltam para o enxoval do bebé. A festa é normalmente organizada entre o 6.º e o 8.º mês da gestação.

 

Uma amiga minha, avó babada de primeira água e muito criativa, teve a genial ideia de adaptar esse costume inventando um “Chá de Ansiedade”, à crioula, como forma de partilhar essa doce ansiedade e celebrar os últimos dias de reinado na barriguinha da  mamã’. Se a moda pega, é caso para se dizer que a tradição já não é o que era!

 

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Fontes

João LOPES FILHO, Defesa do Património Sócio-Cultural de Cabo Verde, Lisboa, 1985.

José LOPES, “A ‘noite de sete’ (Costumes populares de Cabo Verde) ”, in Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação, N.º 146, Novembro de 1961, Praia.

Manuel Bonaparte FIGUEIRA, Narrativas e Contos Cabo-verdianos, Lisboa, 1968.

 

 

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Autoria:Expresso das Ilhas,30 mai 2016 6:00

Editado porRendy Santos  em  30 mai 2016 10:02

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