Em Cabo Verde apesar da unidade estatal permanecer dominante existe uma prudência organizativa baseada na convicção de que se deva instituir novas racionalidades na organização administrativa do Estado. Todavia, a marcha em direção a uma «unidade pluralista»: as regiões administrativas deve ser desencadeada com muita inclusão e sabedoria. Pois, Cabo Verde é um Estado de natureza unitário e a sua unidade permanece constitucionalmente protegida e funcionalmente mantida.
No seu artigo 2º, a Constituição da República de 1992 recorda, com efeito, que “a República de Cabo Verde reconhece e respeita, na organização do poder político, a natureza unitária do Estado, a forma republicana de governo, a democracia pluralista, a separação e a interdependência dos poderes, a separação entre as igrejas e o Estado, a independência dos Tribunais, a existência e a autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública”. (CRCV, 2010, art. 2º).
A emergência jurídica e substantiva das regiões
A força do princípio unitário do Estado, da autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública, estribadas no princípio republicano e democrático do Estado, constitucionalmente consagrados, são lastros que aliados a outros fatores, como a condição arquipelágica do país e o exaurir dos potenciais das autarquias locais, permitem agendar com ciência e prudência a questão da regionalização.
Portanto, volvidos algumas décadas da conquista do poder local e perante uma avaliação séria sobre o seu desempenho, importa agendar, debater e introduzir mudanças na recomposição da armadura institucional do Estado, em nome da racionalização administrativa. A regionalização sabem os cientistas ser uma démarche complexa, porque sozinha não provoca a rutura social esperada, mas pode contribuir, enquanto meio, para induzir mudanças sociais. O seu potencial consiste no desenvolvimento de uma pluralidade de centros de decisão autónomos e em criar a coexistência de “comunidades autogestoras”.
Em se tratando da devolução do poder administrativo estatal, a reforma de coletivos locais implica, inevitavelmente, uma reforma do Estado. Encetá-la pressupõe, sem dúvida, diagnosticar aquilo que é essencial e regulamentar o papel e o respetivo lugar das coletividades territoriais nas instituições. Uma lei que estabelece a nascença e o estabelecimento público regional deve precisar, adaptar, modificar e explicar tudo aquilo que diz respeito à liberdade, os limites dos coletivos territoriais em consonância com a Constituição da República. A regionalização, a ser levada a cabo, em Cabo Verde, não pode aportar veios separatistas nem ser um atentado à unidade dos cabo-verdianos. Ela não pode pretender destruir a unidade do Estado. A sua institucionalização, por mais ideológica que seja, deve ocorrer em estreito respeito pela indivisibilidade nacional (constitucionalmente consagrado) e, simultaneamente, encorajar a diversidade local (legislativamente organizado).
Levando em consideração o possível figurino institucional que vai ser parturejado - autarquias supramunicipais - o dispositivo jurídico a implementar vai ter que contemplar uma “zona territorial da ação” duplamente limitada: para cima, em relação ao seu superior hierárquico (o Governo) e para baixo (as Câmaras Municipais).
Contudo, a este nível, é bom que se diga também que não é tácito que se mude o estado de espírito, as inquietações e os problemas locais dos cidadãos, agindo sobre o Estado de direito. Aliás, a reforma institucional nem sempre altera padrões fundamentais da política. Que elas modificam o comportamento é uma hipótese e não um axioma. Afirmar isto é sublinhar que, no caso vertente, a regionalização não pode ser alçada como um mero expediente para resolver a dialética entre o uno (o Estado) e o múltiplo (as regiões), e nem tampouco a territorialização das decisões e do exercício das responsabilidades. Assim, do ponto de vista substantivo ela deve ser sim a territorialização de um projeto para o coletivo. Uma autogestão no sentido próprio do termo. Do ponto de vista jurídico a lei tem que dar corpo a uma “unidade pluralista” e não um “pluralismo unitário”.
Em todo o caso, quer em nome de um projeto para o coletivo territorial, quer em nome de uma unidade pluralista administrativa, o Governo de Cabo Verde, enquanto entidade gestora efetiva do projeto de regionalização, deve, sem pressa, pugnar-se pela materialização não de uma “regionalização-rutura que, seguramente, poderá degenerar-se em uma “regionalização-ilusão”, portanto, simbólica e cujo capricho só serve para cumprir uma reivindicação de cunho bairrista, cronologicamente, há muito registada na história, mas uma regionalização que faça florescer e crescer o pluralismo, que apresente e crie a melhor gestão.
Neste sentido, muito mais do que emanação do poder central, a institucionalização de experiências-piloto deve atender a projetos territoriais adversos que serão apresentados. Pois, uma experiência-piloto, para que seja cientificamente sugestiva, deve respaldar-se, no mínimo, em um outro caso para se comparar. Isto porque, padrões distintos de decisões e respostas emergem da comparação. As irregularidades ou regularidades, as variações concomitantes ou diferenciadas só são válidas e credíveis quando observadas pelo prisma de comparação.
As colocações tópicas até aqui sinalizadas vão no sentido de trazer para o debate a ideia de que a regionalização exige um replaneamento profundo do poder ao nível do Estado e que a sua prossecução suscita importantes discussões jurídicas e provoca profundas dissensões políticas.
A regionalização: a justeza da reforma
Chegado a este ponto convém ser explícito em afirmar que, apesar das controvérsias, a política é estruturada pelas instituições. Estas, por sua vez, influenciam no fluxo da história com as decisões tomadas no seu âmbito e modificam a distribuição de interesses, recursos, na medida em que criam novos atores e identidades.
Assim, enquanto instituição, a regionalização pode trazer aportes de desenvolvimento ao país desde que estribado em projetos futuros. Qualquer crença no seu projeto não pode aportar nem constituir-se sobre os riscos de uma hipotética estratégia revolucionária de mudanças sociais abruptas induzidas e muito audaciosas. Ela deve concernir em maximizar potencialidades inclusivas em todas as suas dinâmicas. As reformas para a sua instalação não podem fundar-se sobre os velhos rancores da tradição política. As reformas devem traduzir a vontade dos seus protagonistas em reinventar o futuro regrando as contas com o passado. Ao contrário, a regionalização não terá mais do que um valor simbólico e os seus autores transformar-se-ão em ilusionistas.
Como meio de intervenção a regionalização, já experimentada em outras paragens demonstrou constituir-se em uma melhor abordagem para resolver os diferentes problemas ligados ao desenvolvimento local, útil e adequado para a consagração da democracia. Os países que têm ganho a paridade do desenvolvimento socioeconómico são, de facto, aqueles cujas políticas regionais foram bem-sucedidas. Experiências como as de França, Itália e dos EUA, para não citar outras, demonstram que não é a riqueza nem a situação social e sim a capacidade de auto-organização que torna um povo mais rico, mais livre e seus governantes mais eficazes.
De todo o modo, o potencial de desenvolvimento da regionalização vingar-se-á se as suas reformas contribuírem para modificar a identidade dos atores políticos locais, redistribuir os recursos políticos e financeiros e incutir novas normas que exterminem as escleroses políticas e mudem o sistema vertical de relações clientelistas entre as Câmaras Municipais e o Governo.
Nos EUA, Tocquevile com apreço registou no séc. XIX a existência das comunas nas Américas que, segundo ele, assemelhariam aos arrondissement em França e cujos alicerces viriam a ser determinantes para a edificação das regiões administrativas e políticas. Diz este autor que ali, nestas associações territoriais “é o homem que faz os reinos e cria as repúblicas” (TOCQUEVILLE; 1998: 53). Na Itália, Putnam (1996) demonstrou que apesar de várias recalcitrâncias iniciais sobre a regionalização, o desmantelamento da burocracia nacional, através dos chamados 616 decretos, pacote de medidas, que incrementaram o processo contribuiu para desenvolver o país, ainda que com um aproveitamento diferenciado entre o Norte (mais rico) e o Sul (mais pobre) devido á (in)existência de comunidades cívicas numa ou noutra região. Em todo o caso “doravante [a partir de 1977] as regiões, ou as municipalidades sob a supervisão regional, poderiam criar suas próprias secretarias sociais e dotá-las de pessoal, gerir seus programas de subsídios para agricultores e artesões e organizar suas cooperativas e creches escolares. Poderiam formular planos regionais de urbanização e aproveitamento de terras, assumir o controle das câmaras de comércio.
Já no início dos anos 90 como sinaliza este pesquisador os governos regionais estavam gastando quase um décimo do produto interno bruto italiano e quase todas as regiões vinham praticando a política redistributiva e tinham já efetuado reformas importantes em áreas como o planeamento urbano, a proteção ambiental e os caóticos serviços sociais e de saúde italianos.
Outrossim, a regionalização incrementou o surgimento de uma nova elite política: a elite política regional, já com uma nova cultura política. Contudo, no quesito político as consequências não ficaram por aqui em Itália. Ocorreu também a diminuição das distâncias ideológicas, o aumento da tolerância entre as diferentes linhas partidárias e, consequentemente, a atenuação do sectarismo entre a política regional bem como o fim daquele clientelismo vertical, sobretudo no norte do país. Em resumo, Putnam concluiu: “nas duas primeiras décadas da experiência regional houve uma mudança radical na atmosfera e na cultura política, passando-se do conflito ideológico à colaboração, do extremismo à moderação, do dogmatismo à tolerância, da doutrina abstrata à gestão prática, da articulação de interesses à agregação de interesses, da reforma social ao bom governo” (PUTNAM, 1996: 51).
Em Cabo Verde porque ignoramos o grau da «virtude cívica» dos nossos compatriotas e conhecemos, razoavelmente, os vícios que infestam as instituições políticas, mormente aquelas que possuem fortes enleios com os partidos políticos, a questão da regionalização precisa ser muito bem debatida na e com a sociedade-civil e o seu arranjo institucional deve ser concebido e executado de forma freada e faseada. Com conta, peso e medida. Pois, as consequências do páreo instituições políticas//partidos políticos são por demais conhecidas. E quando assim é preceitua a sapiência que o proponente siga a velha máxima que a topografia ensina: caminhar e medir.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 764 de 20 de Julho de 2016.