Um dos problemas essenciais da democracia cabo-verdiana é a tentativa recorrente de apagar a memória histórica por parte de certos segmentos ligados ao Ancien Régime. É claro que tem havido colaboradores prestimosos e, lembrando Lenine, idiotas úteis de vária estirpe.
Fez-se, nesse sentido, um esforço brutal para apagar as marcas da atrocidade de um sistema totalitário que, a partir de 1974, tomou conta das ilhas de Cabo Verde, instaurando uma cultura de violência e impunidade após um conturbado “processo de transição”, em que as forças da esquerda lusitana entregaram, no afã da descolonização e sem um aturado exame de consciência, o poder aos guerrilheiros marxistas que estiveram, durante alguns anos, entrincheirados nas matas da Guiné-Bissau.
A coisa começou mal e acabou bem pior. 31 de Agosto de 1981 foi apenas o epílogo de uma utopia macabra, que os algozes aprenderam, serenamente, nas Academias de Moscovo e Havana.
A ditadura acabou em 1990/91. Mas permanece, incólume, uma cultura perigosa de mentira, falta de rigor e manipulação, que não deixa o país crescer nem livrar-se da canga ideológica maldita do seu passado recente.
Não pode ser. As sementes da Liberdade não podem jamais frutificar no lodaçal da subserviência. Ou do Jdanovismo cultural, girando, enfim, entre a bajulação abjecta e o proselitismo disfarçado.
A propaganda mentirosa tem de ser denunciada, alto e bom som. Compreendida e combatida.
O Marxismo, de alto a baixo, é uma espécie de “humanismo criminoso” (A. Comte-Sponville) e foi precisamente em nome desse ideal que o PAIGC/CV actuou de 1975 a 1990, torturando cidadãos indefesos, encenando julgamentos populares grotescos, silenciando opositores, negando, sistematicamente, direitos fundamentais, matando impunemente, da Brava estremecida de “nhô” Eugénio à ilha de Santo Antão.
Ora, negar a evidência história é, no mínimo, perseverar na mentira, que corrói a alma, e no crime continuado, dir-se-ia, ultrajando, de vez, a dignidade do Homem Cabo-Verdiano e a verdade necessária do Estado de direito, que escolhemos no plano dos princípios, como modo-de-vida civilizado. Não pode ser.
E é francamente inaceitável, por mais que gregos e troianos, num esforço miserável, nos queiram convencer no sentido contrário. “Só a verdade vos libertará”, sentencia a Bíblia Sagrada.
Em Santo Antão, nesse dia trágico e na sequência de abusos sem par devidamente documentados no livro de Onésimo Silveira (A Tortura em nome do Partido Único), as botas negras da tirania, com sofreguidão demoníaca, esmagavam a dignidade mais elementar do povo miúdo e indefeso, que sofria sem quaisquer garantias de defesa, ante um Creonte arbitrário, todo-poderoso e desprovido de piedade.
A História não se apaga e é, bem compreendida, a condição do nosso êxito colectivo. É uma tecnologia de ponta!
Quem recusa a sua inscrição está condenado a repetir os seus erros e mal-entendidos, de uma forma ou doutra. Um povo livre honra as suas lutas mais nobres e a sua memória.
É preciso compreender. Sim. Para que o mal nunca mais se repita.
E para que os carrascos não sejam glorificados.
Só compreenderemos, todavia, o que se passou se prestarmos a devida atenção aos aspectos-chave do pensamento comunista.
Com a vossa permissão, vou recordar as palavras que escrevi há dois anos atrás, numa reflexão fundamentada, sobre o fenómeno, cuja raiz é complexa e de longo alcance:
O pensamento por categorias (‘catchor di dôs pé’, ‘traidores da pátria’, ‘agentes do imperialismo’, ‘sabotadores’, ‘trotskistas’, etc., etc.), tão bem escalpelizado no Livro Negro do Comunismo, anunciava o pior. O ‘inimigo’ tinha que ser eliminado. Mas, antes, tinha que ser animalizado, despido da sua humana condição. Era, afinal, a total inversão de Clausewitz: a política é a continuação da guerra por outros meios.
Era o prenúncio do sofrimento. Da morte. Da destruição em nome do belo Ideal.
De que valia o Zero perante o imenso Infinito dos senhores que vieram do mato? Eles sabiam. Eram a ‘vanguarda iluminada’. Podiam tudo. Iriam conduzir o povo ao novo Canaã. Foi o que aconteceu em Santo Antão e também em São Vicente, numa orgia sem par de violência e impunidade.
Na mente revolucionária, a ditadura ‘liberta’. Purifica.
A PIDE do dr. Salazar nunca fora tão longe.
Isaac Steinberg havia tocado no ponto-chave: ‘…a nova violência é a via dolorosa para a emancipação’. Ao revolucionário tudo é permitido por causa disso. É esta a raiz da arbitrariedade e do crime contra a humanidade.
Da essencial demência dessa casta.
O ‘si-mesmo’, qual ponto de Arquimedes, desse regime monstruoso é, como notou Courtois, precisamente essa ‘miscelânea de exaltação idealista, de cinismo e de crueldade desumana’. O Mal em nome do Bem. É isso, desde o princípio, o comunismo.
É isso que fez o 31 de Agosto. É isso, esse terrível espectro, que ainda hoje impede, entre nós, a consolidação das instituições democráticas. É isso que vai atrasando, nos confins de uma ideologia serôdia, o nosso desenvolvimento individual e colectivo”.
Deixo estas linhas, no altar da República, ao cuidado da vossa soberana consciência, isto é, de cada consciência individual.
Veritas et Libertas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 770 de 31 de Agosto de 2016