As (Lindas) Palavras de JÓ

PorExpresso das Ilhas,13 out 2016 6:00

Estas palavras iniciais (minhas) vieram docemente com o vento, trazidas como uma “cancion del camino viejo”:

 «Toda e qualquer obra de arte tem a intenção (anseio / fim /destino…) de nos desafiar, nos tocar, nos revolver, nos envolver, (re)mexer (n)as nossas estranhas - confrontando-nos con(n)osco mesmos! E se ela não é capaz de fazer isso, mesmo que se escude na magnânima natureza de ser “arte pela arte” (somente), confesso - falta(rá) algo no seu âmago!

Toda a obra é comunicação (“tornar comum”) e só se completa nessa relação - eu/mim - outro(s) - emo(gina)ção!»

Toda a obra produzida, lida, apresentada, representada… é resultado de leituras várias, de decisões penosas, de caminhos e descaminhos, de influências tantas - a tal “intertextualidade”.

Esses são alguns pontos de partida (ou de chegada) para a análise da peça “As palavras de Jó”, uma produção do Grupo de Teatro Centro Cultural Português do Mindelo - a partir de um texto de Matéi Visniec.

Certamente já conhecem a história bíblica de Jó. Se não conhecem, cá está um resumo: Deus deixou que Satanás tocasse Jó, lhe tirasse os (seus) filhos, os (seus) bens… que o (seu) corpo se enchesse de uma lepra maligna! Pediu Deus ao Diabo que conservasse a vida daquele digno homem. Tudo para mostrar que a integridade (e o amor) não residia(m) naquilo que Jó possuía. Pois a fé fala(va) mais alto! A mulher de Jó pediu que ele blasfemasse contra Deus e morresse. Os amigos de Jó vieram e pediram a mesma coisa. Indagaram! Insistiram! Contudo, Jó manteve-se fiel.

O conhecimento da história bíblica pode nos ajudar a entender o espetáculo “As Palavras de Jó” (ou talvez não). Matéi Visniec traz-nos um alter texto, uma leitura outra - um outro Jó.

Num local indeterminado, num universo intemporal, se nos apresenta um Jó que brada: “Eu acredito no Homem. Sim, acredito no Homem!”

Um Jó que (também) sofre. Um Jó que quando homens matam os filhos (dele), quando cortam língua (dele), quando cobrem o (seu) corpo de sangue, quando o atiram na podridão, quando o enterram, quando dilaceram o (seu) corpo, ele ainda acredita no Homem: “Eu acredito no Homem. Sim, acredito no Homem!”

Que sentença imensamente simples! De todo - imensamente profunda! E solta-  -se - a mensagem / o dizer. Pois este (singelo) ato de fala produz um “novo estado de coisas” em nós (“a força das palavras - de Jó”)!

E quando me perguntam se gostei ou não da peça, reproduzo as palavras que me saíram instantes depois e que ainda povoam a minha mente: “Gostei realmente. Daqueles espetáculos que não se desgruda os olhos do palco, que se não se consegue mexer, nos deixa em suspenso, sorvendo cada uma daquelas palavras - as de Jó”.

Uma produção de texto, com texto e para o texto! Que nos transporta para as origens do teatro - a “audiência” (do latim “audire” - ouvir).

E nos é servido com música de Nuno Tavares (no palco), apimentado com um tema original de Victor Duarte, com a interpretação bem conseguida de João Branco enquanto ator. O espetáculo tem a dramaplasticidade exigida, os movimentos sugeridos da encenação, a busca de servir, numa bandeja de ouro, um texto que se come cru - com as mãos - pois lá está todo o sabor.

E quando o pano cai - num final desconcertante. Quando magia se encerra - o efémero se torna eterno em nós. E é um humano Jó que fala con(n)osco humanos (decerto)! «E só nos restam estas palavras. Estas minhas palavras.» Estas palavras - de Jó - que estão em mim: Despe-te da palavra ódio! Ergue a palavra celebração (constantemente), quão nascer do sol, na tua vida! Ancora-te na palavra amor. Sê a palavra verdade. Brilha como a palavra honestidade! Encanta-te com a palavra palavra! E que sejamos verbos ativos, pronomes mais que pessoais - neste nosso mundo de gramáticas vazias!

Sou o Jó de Matéi Visniec quando digo e vivo isso: “Eu acredito no Homem. Sim, acredito no Homem!”. E sou todos os Jós (ambos os Jós) quando sou um ser humano em que Deus e os outros podem e devem acreditar.  

 

Texto: Matéi Visniec

Encenação, Espaço Cénico e Interpretação: João Branco

Música: Nuno Tavares

Movimento: Janaina Alves

Ass. Encenação: Patricia Silva

Figurino: Bid Lima

Tema Musical: Victor Duarte

Desenho de Luz: Paulo Cunha

Preparador Físico: Dje Neves Lima

53ª Produção do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo

*Professor de língua portuguesa

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 775 de 05 de Outubro de 2016.

 

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Autoria:Expresso das Ilhas,13 out 2016 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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