Editorial: Desarmar a população

PorHumberto Cardoso, Director,19 out 2016 8:00

A notícia dos 120 homicídios num ano trazida a público pelo Procurador Geral da República em Setembro último finalmente despertou a sociedade cabo-verdiana para os excessos de violência que ocorrem no país. A informação veio confirmar o sentimento generalizado de insegurança que se renova no dia-a-dia com os relatos de assaltos à mão armada, troca de tiros entre elementos de gangs e ajustes de contas que se saldam em mortes em vários pontos da capital. Piora a situação a percepção de que cada vez mais também a Polícia vem-se tornando o alvo de ataques. Neste panorama preocupante é notório o papel crescente das armas de fogo, seja das fabricadas localmente, as chamadas “boka bedju”, como das armas importadas. A questão na mente de todos é porque não se está a resolver definitiva e eficazmente a questão das armas de fogo nas mãos das pessoas. 

Dados da polícia apontam que nos últimos três anos, 2013, 2014 e 2015 houve respectivamente 21, 22 e 11 homicídios por armas de fogo e, no mesmo período, casos de ofensas corporais também com armas de fogo em número 131, 181 e 76. 80% a 90% dos casos de homicídio e ofensas corporais aconteceram na cidade da Praia, onde também na mesma percentagem se verificaram os casos de ataques a polícias com essas armas em número respectivamente de 17, 9 e 7 nos anos referidos. Curiosamente, em relação à posse ilegal de armas foram nos últimos três anos de 83, 79 e 62 e já não é a Praia onde há o maior número de casos mas sim em Santa Catarina, Santa Cruz e S. Filipe na ilha do Fogo.

Em 2013, o governo fez aprovar na Assembleia Nacional a lei de armas de pequeno calibre e lançou uma campanha de recolha voluntária que falhou. Segundo o actual Ministro da Interna, Paulo Rocha, em declarações à imprensa em Julho último, “a campanha não funcionou”. O problema teria sido de “comunicação”. Quando hoje se espera que a matéria seja retomada, constata-se, na declaração, da passada quinta-feira, dia 6 de Outubro, sobre “o conjunto de medidas de intervenção imediata para a contenção de insegurança” que a questão das armas nas mãos das pessoas não foi contemplada. Uma estranha omissão considerando que um estudo anterior da Afrosondagem datado de 2008 e citado por oficiais da PN situava o número de armas em circulação em Cabo Verde entre 6 mil e 8 mil e que também é hoje mais do que evidente o papel crescente das armas de fogo em homicídios e assaltos. Mesmo a medida que em 2010 o então governo terá idealizado para travar o “abastecimento de determinados tipos de munições” com o objectivo de  conter a produção de armas artesanais não terá resultado. Os “boka béju” continuam a aparecer em cenas de crimes violentos.

O pesquisador Júlio Jacob, autor do Mapa de Violência no Brasil, é peremptório em afirmar  que “não há estudo sério no mundo que não comprove a relação entre posse de arma de fogo e o número de assassinatos num país”. Este facto foi espectacularmente provado há duas décadas no Reino Unido e na Austrália. Na sequência de massacres de dezenas pessoas por atiradores armados, os governos desses países fizeram passar leis que praticamente proibiram as armas de fogo. As taxas de homicídio mas também de suicídio diminuíram consideravelmente com essas medidas de retirar à população o acesso a armas. O mesmo aconteceu no Brasil durante algum tempo depois da entrada em vigor do Estatuto de Desarmamento. Diminuíram casos de mortes por brigas conjugais, conflitos entre vizinhos e por acidentes na manipulação da arma.

Mas como o Brasil também demonstra – a violência voltou depois a aumentar - não se pode ficar só pelo desarmamento para manter baixo o nível de homicídios e de crimes em geral. Há que desenvolver outras políticas tanto no combate ao crime como na sua prevenção. Fundamentalmente há que reafirmar o contrato social e renovar a crença no destino comum com políticas de inclusão, com igualdade de oportunidades e com crescimento e emprego de qualidade. E tudo isso num ambiente em que a justiça funciona, vive-se em segurança e o Estado não é consumido pela corrupção que privilegia uns e trata desigualmente muitos outros.

Grandes desafios se colocam a Cabo Verde em termos de segurança. O índice Mo Ibrahim veio relembrar como a segurança é vital para o país assegurar a competitividade externa necessária ao desenvolvimento da sua economia, a começar pelo turismo. A degradação dos índices de crimes nos últimos anos deve ser um incentivo para se rever profundamente todo o sistema de Segurança. É evidente que com o que se tem, não se está a obter os resultados prometidos e que o país urgentemente precisa. E certamente que não é a despejar meios por cima de problemas que se vai resolvê-los. Foi tentado no passado e não resultou. Há que mudar. Desarmar efectivamente a população pode também ser parte de um bom começo.  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 776 de 12 de Outubro de 2016.

 

 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,19 out 2016 8:00

Editado porRendy Santos  em  24 out 2016 9:00

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