Exmo. Senhor,
Escrevo-lhe esta carta, contrariadamente. Primeiro, porque para mim, escrever é antes de mais um acto de liberdade; um desejo incontido e nunca uma obrigação compelida. Depois, porque não é do meu timbre vir à praça pública destratar pessoas, que, de um modo ou doutro, sempre me merecem algum respeito.
Há já pelo menos duas semanas, recebi, gentilmente oferecido por um amigo comum, um exemplar do seu livro recente, “A Palavra & o Verbo”, da Acácia Editora, que, conforme Nota Introdutória, é um repositório do pensamento cultural que caracterizou o seu autor, num percurso que vai de 1990 até 2015.
Ao folhear o livro, se me deparou, a páginas 586, quarto parágrafo (linhas 17 a 21, da página), integrado num discurso seu, datado de Abril de 2007 e intitulado, “No Centenário de Baltasar Lopes da Silva”, a seguinte afirmação, que passo a transcrever “Voltando a Baltasar Lopes, que é sujeito principal da homenagem prestada pela Câmara de Ribeira Brava, gostaríamos de dizer que o Governo não só se associa ao evento como ainda louva a Câmara e o seu Presidente (Américo Nascimento) que estiveram no origem desta tão merecida manifestação de reconhecimento.” (sic).
Aborrecido, mas não admirado, enviei uma mensagem à pessoa que me tinha oferecido o livro, acusando e agradecendo a oferta, mas assinalando que não dava para acreditar naquilo que tinha lido.
O meu amigo respondeu-me, dizendo que a falha era realmente grave, mas ele acreditava que não tinha sido intencional e ia, de todo o modo, alertar o autor.
Criado como fui, sob cânones da boa educação e da moral cristã, aguardei, pacientemente, que o senhor Manuel Veiga me apresentasse um pedido de desculpas, enquanto Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Brava, na data do Centenário de Baltasar Lopes, ou então viesse a público, esclarecer aquilo que, candidamente, a pessoa que me ofereceu o livro designou de “gralha muito grave”, mas certamente “não intencional”. Tal, porém, não aconteceu.
Por isso, e por uma questão de coerência e honestidade intelectual, sou obrigado a vir agora lembrar-lhe e, por esta via revelar, algumas peripécias por si protagonizadas, para tentar contornar a iniciativa da Câmara Municipal de Ribeira Brava (CMRB) de celebrar, em 2007, o Centenário de Baltasar Lopes.
Como há-de estar lembrado, em Março de 2006, era o senhor Ministro da Cultura, pedi-lhe, enquanto Presidente da CMRB, uma audiência e entreguei-lhe em mãos uma nota da citada edilidade, acompanhada da deliberação aprovada pela mesma, para a celebração, no ano seguinte, do centenário do nascimento de Baltasar Lopes.
A audiência, que teve lugar no seu gabinete, então instalado no Palácio Ildo Lobo, na Praia, durou cerca de quarenta e cinco minutos e foi ocasião para eu explanar aquilo que o Município da Ribeira Brava tinha em programa e preparação para realizar a referida efeméride.
O senhor foi exuberante nos elogios e entusiasmo e garantiu-me que podia contar com a colaboração institucional do seu Ministério e uma ajuda financeira, nunca inferior a um milhão de escudos.
De regresso a São Nicolau, enviei-lhe uma carta, agradecendo a entrevista que me concedera e reafirmando-lhe tudo aquilo que lhe tinha exposto durante aquela audiência. Pouco tempo depois recebi uma missiva sua, reafirmando o seu entusiamo e ratificando, expressamente, o firme compromisso do Ministério da Cultura, por si dirigido, em participar no financiamento do evento, com pelo menos um milhão de escudos.
Na primeira quinzena de Julho de 2006, fiquei a saber, por terceiro, que o Governo tinha publicado uma Resolução, determinando o ano 2007 como sendo da comemoração do primeiro centenário da Geração Claridade e que o Ministro da Cultura já tinha constituído uma Comissão para organizar as celebrações.
Telefonei-lhe para saber de que se tratava e o senhor disse-me que, em Março, depois de eu sair do seu gabinete, os seus assessores foram lembrar-lhe que em 1994 fora o centenário de João Lopes e ninguém se lembrara; 2001, de Aurélio Gonçalves, ninguém se lembrara; 2002, de Jorge Barbosa; 2005, de Jaime de Figueiredo e B. Lèza, assim por diante e, por isso, o senhor decidira propor ao Governo juntar essas efemérides numa celebração única, em 2007.
Eu então lhe disse que não era bem assim, pois, quanto a João Lopes, por exemplo, a então Câmara Municipal de São Nicolau tinha-se lembrado e inaugurado, a Biblioteca Municipal, com o seu nome.
Palavra puxa palavra, acabámos por nos desentender e eu disse-lhe que, assim sendo, o Município da Ribeira Brava prosseguiria no seu propósito, já anunciado, de organizar o Centenário de Baltasar Lopes (BL).
Na realidade, a CMRB procedeu com as suas diligências, com vista à organização do Centenário de BL e, às tantas, começamos a ter informações, através de pessoas já contactadas no país e no estrageiro, que o Ministério da Cultura andava a assediar as mesmas pessoas, tentando demovê-las de ir à Ribeira Brava e, ao invés, participarem, na mesma altura, numa Conferência sobre os Claridosos, na cidade da Praia. Foi-me dito, aliás, por um dos participantes, que o próprio Ministro lhe tinha telefonado, tentando aliciá-lo para a conferência da Praia.
Só que o programa do Centenário de BL estava já devidamente estruturado e o senhor, enquanto Ministro, não teve outro remédio senão deslocar-se a Ribeira Brava, para presidir à abertura do mesmo, como fora devida, atempada e respeitosamente convidado.
No entanto e apesar de inúmeras tentativas escritas e orais da parte do meu Gabinete e do Secretário Municipal, a CMRB, jamais conseguiu sacar do Ministério da Cultura um centavo que fosse, do milhão de escudos, expressa e solenemente prometidos por si, para a realização do Centenário de BL.
E acredita que não consigo sentir raiva da sua conduta. Sinto, sim, uma profunda tristeza; em saber que um intelectual com as responsabilidades sociais, políticas e culturais que o senhor tem, foi capaz de, por motivos que não consigo descortinar, ter um comportamento, a todos os títulos inapropriado e reprovável, como o que acabei de descrever.
Daí as minhas dúvidas agora, sobre a sua gralha, falha, engano, erro ou o que se quiser chamá-lo. E convenhamos que um comportamento dessa natureza da parte de um homem que diz ter estado oito anos num Seminário Menor e mais quatro anos em Coimbra, para estudos superiores complementares de teologia, nomeadamente, esse comportamento, dizia, é deveras assustador para quem, como eu, teve uma saudável educação cristã.
Na verdade, não me sentiria mais violentado se fosse assaltado por thugs, na rua, para me roubarem a carteira, por exemplo.
E, creia-me que é com enorme pena que lhe digo isto tudo, porque, a verdade é que temos amigos comuns, sou amigo de familiares seus e, no fundo, como lhe disse, anteriormente, não consigo querer-lhe mal.
Atentamente,
/Amílcar Spencer Lopes/
(Presidente da CMRB entre 2004 e 2008)