Os anos oitocentos

PorExpresso das Ilhas,7 fev 2017 6:00

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Há poucos dias, fui convidada para apresentar um livro do século XIX, Contos e Bosquejos, de Guilherme Dantas. Na preparação para a apresentação, tentei perceber o significado dos anos oitocentos para Cabo Verde. Muitas das discussões que ainda hoje perduram já tinham sido levantadas na altura. Deixo aqui uma parte da minha apresentação, que foi em jeito de enquadramento do século XIX e ajudam a entender o contexto político da época.

Ora, como é geralmente sabido, ou talvez nem tanto, o século XIX foi intenso, turbulento e assaz revolucionário, tendo este arquipélago sido perpassado por mudanças políticas, económicas, sociais e culturais.

Em 1807, devido às invasões napoleónicas, D. João fugiu para o Brasil, transferindo a coroa portuguesa do reino para uma das suas colónias, tendo instalado a sede da monarquia no Rio de Janeiro. Para Portugal, o século não tinha começado nada bem: dependência económica em relação à Grã-Bretanha; ameaça da França de Napoleão Bonaparte; subordinação política ao Brasil, que na época tinha aspiração independentista e tomava como exemplos a revolução americana (independência dos EUA, 1776) e as ideias iluministas da revolução francesa (1789).

Todavia, ainda no primeiro quartel de oitocentos, ocorreu uma evolução política em Portugal que resultou na revolução liberal de 182o, instituindo a assembleia parlamentar, constitucionalmente regida. Em sequência, aconteceu a independência do Brasil em 1822. A desarticulação do império sul-atlântico, que reduziu o peso económico e o significado político de Portugal, teve as suas consequências para Cabo Verde. Logo surgiu um movimento que ambicionava a separação deste arquipélago em relação a Portugal e a sua vinculação ao Brasil.

Depois do porto da Praia ter servido de ancoradouro para uma batalha naval no âmbito da independência dos EUA, os anos oitocentos começavam com o estabelecimento de um novo sistema de relações entre estas ilhas e aquele país. A nível do comércio externo e das relações diplomáticas com os EUA, foram anos cruciais para Cabo Verde, favorecendo o aumento dos fluxos migratórios para esse outro lado do Atlântico. De tal sorte que, em 1818, acabou por ser inaugurado o consulado americano na Praia, o primeiro em toda a África subsariana.

No plano interno, em 1837, iniciou-se o debate sobre a construção de uma nova capital administrativa, com sede na ilha de São Vicente, em devida honra ao seu imponente porto e para a revalorização da posição geoestratégica de Cabo Verde. Surgiu a imprensa nacional (1842). Eclodiram sucessivas revoltas: de militares reinóis (Batalhão Açoriano, Praia, Março de 1835, opondo os absolutistas aos liberais); de escravos (em Mont’Agarro, Praia, Dezembro de 1835); de camponeses dos Engenhos (1822) e de Achada Falcão (1841), em Santiago, e mais duas em Santo Antão (1886 e 1894). A vila da Praia elevou-se à cidade capital em 1858. Assistiu-se à abolição do tráfico negreiro (1878). Houve o apogeu do Porto Grande (São Vicente). Surgiram o efémero Liceu da Província (Praia, 1860) e o consagrado Seminário-Liceu de São Nicolau (1866).

Em 1879, ocorreu a desanexação do Distrito da Guiné em relação à Província de Cabo Verde, pois tinham uma administração comum que vinha desde 1550. Num quadro mais vasto, o último quartel de oitocentos, ficou pautado pela partilha inter-europeia do continente africano na conhecida Conferência de Berlim de 1884-1885 e pelo ultimato inglês de 1890 à administração portuguesa, definindo os contornos de um novo sistema imperial português, marcado pela fixação das fronteiras coloniais, pelas campanhas militares de pacificação, pela implantação do aparelho colonial moderno com reforço da presença portuguesa e pela limitação do poder político e social das elites crioulas.

 

Ilha a Ilha

Algum cristão terá nascido na ilha de Santa Luzia? Pois, há vestígios da presença humana ali. Sabe-se que, na sequência de paragens episódicas de aventureiros marinheiros, a pequena ilha conheceu um efémero processo de povoamento por gentes de ilhas vizinhas em 1881. Embora rodeada de tanto mar, a falta de tecnologia e engenho para a produção de água, fez com que ela fosse pouco viável para uma permanência perene.

Foi nos anos oitocentos que arrancou o povoamento definitivo do Sal e de São Vicente. No início do século XIX, a ilha do Sal já tinha sido aportada para o negócio do produto que lhe deu o nome. Com a mão-de-obra escrava, abriu-se um túnel e fez-se o primeiro caminho-de-ferro dos territórios sob domínio de Portugal, facilitando, por essa via, o escoamento de sal, que era também o principal produto de exportação na ilha do Maio.

No caso de São Vicente, a pequena povoação circunscrita à baía do Porto Grande, na data conhecida por Vila Leopoldina, foi rebatizada com o nome de Mindelo em 1838. Pela iniciativa do Governador da Província de Cabo Verde e do Distrito da Guiné (Joaquim Pereira Marinho) e com a autorização por decreto do Ministro da Marinha e Ultramar (Marquês de Sá da Bandeira), a sua elevação para capital era objetivo primordial. Tal decreto de Lisboa só não foi implementado devido a uma contundente resistência e, pelo receio da influência dos ingleses em Mindelo, Praia acabou por sacar o título de cidade capital em 1858. A povoação do Mindelo ganhou o título de vila em 1858 e de cidade em 1879. Isto mostra que a peleja entre as duas cidades é já antiga.

O povoamento da ilha de São Vicente acelerou a partir da segunda metade do século com a população de outras ilhas. Pela afluência de navios ingleses, pelos benefícios da evolução tecnológica da Inglaterra e devido à dinâmica do Porto Grande no comércio de carvão e produtos exóticos, a ilha ficou conhecida e marcada de vez na memória como os anos dourados do Mindelo, embora viesse a entrar numa lenta decadência a partir dos finais do mesmo século.

Nos anos bons do Porto Grande, como se fosse por arrastamento, Santo Antão também fez parte das rotas dos vapores. Aproveitando-se da ocasião, a localidade conhecida hoje por Porto Novo, passaria oportunamente a chamar-se Porto Carvoeiro.

Na segunda metade do século, já se sentia a presença de uma elite crioula letrada, escolarizada na metrópole e no então recém-criado Seminário-Liceu de São Nicolau (1866). A fundação da imprensa nacional na Boa Vista (1842) e o investimento na instrução clássica possibilitaram uma irreversível transição da burocracia agrária para a administrativa, transformando Cabo Verde numa espécie de colónia de serviços e os seus quadros aptos para servirem como intermediários coloniais em outros territórios ultramarinos de Portugal.

Com a abolição da escravatura em 1878 e a perda de legitimidade oficial dessa base fundamental do capitalismo mercantil, registou-se a progressiva derrocada do poder material e simbólico da classe dos morgados, mormente em Santiago e Fogo. Por conseguinte, assistiu-se a uma investida maior no acesso aos navios baleeiros americanos, que faziam escalas cada vez mais frequentes no pequeno porto da Brava e rumavam a outros destinos, como New Bedford. Disto resultou a fantasia crioula pelo sonho americano, com grande impacto nas ilhas de Fogo e Brava, e que dura até hoje.

Posto isso, denota-se que se torna cada vez mais importante revisitar a história para um melhor conhecimento destas ilhas. É interessante verificar que muitas dessas dinâmicas que aconteceram no século XIX continuam a estar presentes nos dias de hoje, de uma maneira ou de outra.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 792 de 01 de Fevereiro de 2017.

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Autoria:Expresso das Ilhas,7 fev 2017 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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