Do arquipélago dos Bijagós a 100% Mandinga no Mindelo: 77 anos de História

PorJosé Almada Dias,2 mar 2017 6:09

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Quando, em 1940, o ditador português António de Oliveira Salazar organizou a Exposição do Mundo Português, em Lisboa, estava longe de imaginar que iria unir o arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau, e a ilha de São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde.

Para essa famosa exposição, Salazar mandou levar a Lisboa representantes das comunidades das regiões do mundo por onde os portugueses tinham andado, do Oriente ao Ocidente, da Ásia às Américas, incluindo os representantes das colónias africanas.

De Cabo Verde, terá ido de barco uma comitiva chefiada pelo famoso compositor B. Leza, que, segundo rezam alguns livros, terá ficado furioso quando, ao chegar ao lugar da exposição, em Lisboa, encontrou o “stand” de Cabo Verde cheio de palhotas africanas. Cioso da sua cultura crioula cabo-verdiana, B. Leza terá ameaçado vir-se embora para Cabo Verde, tendo a organização prontamente substituído as palhotas por uma habitação típica cabo-verdiana, o que fez com que B. Leza e os restantes músicos cabo-verdianos tivessem resolvido ficar. Um trovador patriota e contestatário, o nosso B. Leza.

Reza também a História, devidamente fundamentada pelo investigador cabo-verdiano Moacyr Rodrigues, que uma comitiva de bailarinos, vindos das verdejantes ilhas do arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau, desembarcou em 1940 no Porto Grande da árida ilha de São Vicente, em Cabo Verde, na viagem que os levaria a Portugal para essa mesma exposição. Terão dado um espectáculo na zona da Salina, hoje Praça Estrela, que terá causado um grande impacto nas curiosas e criativas gentes da cidade do Mindelo, sempre ávidas de novidades, condição normal dos habitantes de cidades-porto, sempre à espera que o mar lhes traga coisas novas.

Segundo Moacyr, logo no Carnaval seguinte havia mindelenses vestidos a imitarem esses bailarinos e as suas danças africanas, que caíram no gosto dos mindelenses, particularmente nos bairros mais pobres, onde a simplicidade dessas vestimentas caiu como uma luva.

Nesse mesmo ano, o investigador diz que houve uma outra figura que também fez muito sucesso no carnaval mindelense – muita gente vestiu-se de agentes da GESTAPO, a famosa e temerária polícia do ditador nazi Adolf Hitler, isso em plena II Guerra Mundial.

O Carnaval é isso, imitação e sátira destemida, desde os seus primórdios na antiga Grécia há mais de 4 mil anos.

Ainda hoje, muita gente tem dificuldade em lidar com o carácter irreverente, a raiar o escandaloso, que o Carnaval acarreta. Talvez por não conhecerem a fundo a origem desta festa que atravessou os tempos até atingir o seu clímax na crioulidade das Américas, onde os crioulos a adoptaram e a tornaram a maior manifestação cultural do planeta, festejada de forma rija de Buenos Aires a Nova Orleães e hoje exportada até para o Japão.

Uma festa popular que veio da Antiguidade para, de alguma forma, se afirmar como símbolo da modernidade, de quebra, mesmo que temporária, de preconceitos e tabus.

Mas se os bailarinos que actuaram no Mindelo eram Bijagós, qual é o motivo para os seus imitadores terem passado a denominar-se Mandingas? Um mistério ainda por esclarecer...

A costa ocidental africana é rica em etnias, diversidade que se reflecte entre os emigrantes africanos que hoje habitam em Cabo Verde. Se hoje chamamos erradamente a todas as etnias africanas entre nós de Mandjacos, sem nos preocuparmos de que etnia são, não é de se estranhar que alguém tivesse decidido chamar de Mandingas aos bailarinos Bijagós que passaram pelo Mindelo naquele longínquo ano de 1940. Para todos os efeitos, os Mandingas, um dos maiores grupos étnicos da África Ocidental, são uma etnia muito mais mediática. São descendentes do famoso Império do Mali, sendo na sua maioria muçulmanos, e consta que serão os ascendentes de uma boa parte dos negros da América do Norte. No Brasil, aos Mandingas, por serem mais instruídos do que os outros escravos, eram-lhes conferidas posições de confiança, e mesmo de controle dos outros escravos. Ao contrário dos Bijagós, vestem longas vestes (boubous) e costumam usar turbantes nas cabeças.

Uma história muito diferente da dos Bijagós, uma etnia com pouca expressão populacional e que se refugiou num arquipélago da Guiné, fugindo de conflitos com outras etnias mais numerosas.

De todo o modo, as saias dos Bijagós são há muito usadas no Carnaval de Bissau, como me contaram muitos amigos que cresceram na Guiné.

Por cá, por serem crioulos mestiços, os cabo-verdianos têm de se pintar de preto para imitar os seus ancestrais guineenses; se tivessem que imitar os seus ancestrais europeus, teriam de se pintar de branco – imaginemos um grupo carnavalesco de cabo-verdianos a tentarem imitar os dançarinos transmontanos ou minhotos. Esta é a dicotomia existencial dos povos crioulos e mestiços, que são o somatório dos seus ancestrais, não sendo nem um nem outro, algo muito mal compreendido até hoje, particularmente devido a intervenções ideológicas e outras. E essa dicotomia vai muito para além da cor da pele...

Em 2020, irão completar-se 80 anos da história dos Mandingas do Mindelo. Uma história que resistiu durante todo este período, com altos e baixos, com alturas de maior e menor popularidade. Sinal de que vivemos numa sociedade cada vez mais urbana e moderna, os Mandingas de hoje arrastam milhares de pessoas com eles, já não são um pequeno número de bailarinos solitários que andavam pelas ruas do Mindelo a assustar as crianças, como acontecia na minha infância. Hoje, as crianças de todas as classes sociais querem vestir-se de Mandingas pelo Carnaval e estou convencido de que o fenómeno irá crescer no futuro.

Também estou certo de que, no dia em que o carvão de pilha e óleos usados forem substituídos por tintas apropriadas, o número de bailarinos Mandingas no Mindelo e em todo o Cabo Verde irá crescer exponencialmente.

A cidade do Mindelo deveria começar a preparação dos 80 anos de História dos Mandingas. Gostando-se ou não, os Mandingas são hoje um dos maiores fenómenos culturais de rua deste país, constituindo-se aos poucos num dos maiores atractivos do já turístico Carnaval do Mindelo. É só ver as expressões nas caras do número crescente de turistas que ano após ano acompanham e participam nos desfiles dominicais dos Mandingas.

Da mesma forma que hoje há emigrantes e turistas que se metem num avião para virem desfilar nos grupos carnavalescos do Carnaval do Mindelo, haverá, num futuro próximo, muitos que o farão para saborear a experiência única de desfilarem seminus, com os corpos pintados de preto, a imitar os guerreiros Bijagós, apelidados por cá de Mandingas, dançando ao ritmo irresistível da música crioula de origem africana dos cortejos.

Se acertarão o passo ou não, isso já são outros quinhentos, que os ritmos vindos da mãe África são contagiantes, mas as danças não são de fácil execução, sobretudo para quem lhe falta sangue africano recente nas veias. Porque, lá no fundo, todos viemos de África, mesmo os lourinhos escandinavos – o problema é que os antepassados deles saíram de África há muito mais tempo, daí a cadência, o rebolado e o requebro das ancas se terem perdido no tempo. Mas como é Carnaval, ninguém leva a mal...

As forças vivas e as autoridades do Mindelo têm de compreender o papel que esta cidade sempre desempenhou na história de Cabo Verde: a de farol que indica o futuro, de porta de entrada das novidades, a terra, por excelência, das indústrias criativas; esta é uma das essências do Mindelo e que não pode ser coarctada, principalmente nesta época de globalização e arranque rumo ao turismo urbano e cultural que deverá ser o futuro destas ilhas.

Sugiro que se comece por uma visita ao arquipélago dos Bijagós para entender a origem do fenómeno. Eu serei dos primeiros a inscrever-me na comitiva. Do Mindelo a Bolama, de um arquipélago lusófono para outro arquipélago lusófono, dois povos unidos por laços ancestrais genéticos, culturais e históricos e que se podem entender de forma bilingue em crioulo e em português, mas, sobretudo, que podem comunicar através do ritmo e da dança dos Bijagós/Mandingas. De seguida, a natural geminação entre o Mindelo e Bolama, a capital do arquipélago dos Bijagós.

E, para culminar, a vinda em 2020 ao Carnaval do Mindelo de um grupo de bailarinos Bijagós, recriando uma viagem com 80 anos de História e unindo culturalmente dois povos irmãos através daquilo que mais gostam de fazer: tocar, dançar e respirar cultura.

Consigo imaginar o êxtase cultural e emocional que será ver bailarinos Bijagós vindos da Guiné a dançarem misturados com os Mandingas crioulos dos vários bairros do Mindelo, numa irresistível cadência marcada pelos tambores surdos de origem brasileira, bem acompanhados pelo ritmo dos ferrinhos de fabrico local (aqui no Mindelo, é ferro e tambor) que marcam o compasso que permite o solo dos instrumentos de sopro de origem europeia. Eu chamaria a isso, simplesmente, caboverdianidade, à qual os bailarinos Bijagós não terão certamente dificuldades rítmicas em se adaptar.

A estória dos Mandingas do Mindelo e dos seus antepassados Bijagós é mais um cartaz turístico a acrescentar aos muitos que esta cidade plantada numa das baías mais bonitas e turísticas do mundo poderá oferecer a quem a visita, em mais um roteiro cultural que pode ser explorado pelos guias turísticos durante o ano todo, e que poderá acrescentar mais postos de trabalho a esta que é a maior indústria criativa nacional: o Carnaval.

Haverá emprego melhor do que ser Mandinga profissional o ano todo, ganhando em euros e em dólares?

Ariáá!!!!  

 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 795 de 22 de Fevereiro de 2017.

 

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Autoria:José Almada Dias,2 mar 2017 6:09

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  24 fev 2017 15:30

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