Este ano, o mês de Fevereiro termina em grande com a Terça-Feira de Carnaval e o mês de Março começará com enorme ressaca numa Quarta-Feira de Cinzas. Pelo meio, celebrou-se o Dia dos Namorados. Tudo isso me faz lembrar de duas canções do filme Orfeu Negro, Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá e António Maria, e A Felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ambos elementos fundamentais do movimento da bossa nova do final dos anos cinquenta no Brasil.
Em 1955, Vinícius de Moraes acabou finalmente de escrever a sua peça de teatro Orfeu da Conceição. A inspiração surgiu na sequência de incursões por favelas em princípios dos anos quarenta, tendo logo iniciado a sua escrita criativa. Baseando-se na tragédia grega, o poeta, músico, compositor, cineasta, dramaturgo e diplomata brasileiro recriou uma tragédia carioca para dar conta da realidade existencial precária, da dignidade e da cultura dos moradores negros do morro, numa qualquer favela no Rio de Janeiro, no Brasil, em plena época do carnaval, com heróis negros, os seus amores e as suas escolas de samba descendo o morro para animar as avenidas da grande cidade. Em contraposição à grande cidade do sonho e da fantasia, a imagem da favela surgia como lugar da discriminação, ou «quarto de despejo» de uma cidade (utilizando aqui as palavras da escritora afro-brasileira Carolina Maria de Jesus, cuja trajectória de vida foi marcada pela amarga realidade da fome e da miséria dos anos cinquenta numa das muitas favelas do Brasil).
E desse modo, a lenda do Orfeu grego, músico e poeta da Trácia, daria origem a uma tragédia carioca com um Orfeu negro, herói da favela, amado compositor popular e exímio tocador de violão, cuja força da música causava estragos em femininos corações, mas que se apaixonou perdidamente por uma bela nordestina recém-chegada a essa favela no Rio de Janeiro, por quem veio a ter o maior amor do mundo, maior que o céu, maior que a morte: «...Cantando só teus olhos/ Teu riso, tuas mãos/ Pois há de haver um dia/ Em que virás/ Das cordas do meu violão/ Que só teu amor procurou/ Vem uma voz/ Falar dos beijos perdidos/ Nos lábios teus// Canta o meu coração/ Alegria voltou/ Tão feliz a manhã/ Deste amor» (Manhã de Carnaval, Luiz Bonfá e António Maria).
Tal como o seu homónimo da mitologia grega, a voz do Orfeu negro era mais doce, mais envolvente e dourada do que o mel. O pai, que lhe ofereceu o melhor violão, orgulhava-se do filho; a mãe alegava que até ofendia a Deus tocar dessa maneira ou que até era pecado ficar falando com Orfeu tocando. O som do seu violão plangendo uma valsa se ouvia um pouco por todo aquele Platô de terra com casario ao fundo junto ao barranco, que era defendido, à esquerda, por uma pequena amurada de pedra em semicírculo, da qual descia um lance de degraus. Ali, o sublime e o trágico se misturavam num tom épico.
Todas as personagens da tragédia, na estreia da peça de teatro Orfeu da Conceição, foram representadas por actores e actrizes negros, opção consciente e politicamente forte para um Brasil social e culturalmente racista. Com poucas excepções, também o mesmo aconteceu no filme Orfeu Negro (ainda conhecido por Orphée Noir ou Black Orpheus), inspirado na peça teatral do dramaturgo brasileiro Vinícius de Moraes e dirigido pelo cineasta francês Marcel Camus, em 1959, filme esse premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes (1959, França), o Óscar de melhor filme em língua estrangeira (1960, EUA) e o Globo de Ouro (1960, EUA).
O Carnaval do Rio é essencialmente dominado pelas escolas de samba da periferia urbana. Inspirado no moderno carnaval parisiense, a cidade do Rio de Janeiro é hoje conhecida mundialmente pelas festividades carnavalescas, com os seus cortejos e desfiles das escolas de samba ao som das marchinhas, blocos de enredo, bandas de rua, bailes de máscaras, fantasias luxuosas e carros alegóricos. Tratando-se de uma das principais manifestações culturais do Brasil, o carnaval é uma festa popular de rua, sendo apontado o do Rio como maior do mundo, que decorre durante cinco dias consecutivos.
Porém, na tragédia carioca do dramaturgo Vinícius de Moraes, depois da manhã de carnaval, a maravilhosa cidade do Rio transformou-se num inferno na vida do Orfeu negro. Pois, no último dia de carnaval, enquanto fugia de um sedutor que a perseguia, a sua bem-amada nordestina morreu. Orfeu pela paixão foi crucificado. Já em tempo quaresmal, enquanto percorria o morro com o cadáver da sua deusa de ébano nos braços, e atacado por uma vilã enciumada, também ele acabou por morrer nessa circunstância trágica.
Por analogia, e não como meros reflexos, para os moradores negros do morro, numa qualquer favela do Rio, «tristeza não tem fim/felicidade sim». Porque «a felicidade do pobre parece/ a grande ilusão do carnaval/ a gente trabalha o ano inteiro/ por um momento de sonho/ pra fazer a fantasia/ de rei, ou de pirata, ou jardineira/ e tudo se acabar na quarta-feira» (A Felicidade, Vinícius de Moraes e Tom Jobim). Isto significa que, depois de diversões e folias com máscaras de todas as cores e disfarces de todos os tipos, no dia seguinte ao carnaval, a cinzenta e cruel realidade desponta como uma dolorosa fatalidade.
A festa do Rei Momo (sarcástico e delirante senhor do carnaval e de toda a folia) antecede a Quarta-Feira de Cinzas, dia inaugural do tempo quaresmal. Aliás, etimologicamente, a palavra carnevale (carnaval) deriva de duas outras expressões: «carne, vale!» (adeus, carne). Isto significa que, no mundo cristão, o carnaval é visto como uma festa popular profana do adeus à carne. E assim, na Quarta-Feira de Cinzas começam os quarenta dias de oração, jejum, penitência, privações e abstinência de carne.
Designa-se de Semana Santa a última semana da Quaresma, com a conhecida Quinta-Feira Santa (celebração da Última Ceia e do dia em que Jesus lavou os pés aos seus discípulos) e a Sexta-Feira da Paixão (a última sexta-feira antes do Domingo de Páscoa). Como se denota, trata-se não de uma festa pagã, mas já de natureza muito religiosa, em celebração à ressurreição de Jesus Cristo que, segundo o Novo Testamento, teria ocorrido três dias depois da sua crucificação e morte no Calvário. A Páscoa, uma festa primaveril, é celebrada com alegria, porque o Senhor ressuscitou para não mais morrer e na esperança de uma Páscoa eterna, na qual não haverá morte nem sofrimento.
Em Cabo Verde, tudo isso se tem sentido nestes dias, num ambiente onde o sagrado e o profano andam de mãos dadas, com maior ou menor significado numa ou noutra ilha do arquipélago.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 796 de 28 de Fevereiro de 2017.