Identidade crioula: Projectar o Maio para o futuro! (II)

PorJosé Almada Dias,9 mai 2017 6:00

 

A Câmara Municipal da ilha do Maio realizou nos passados dias 20 e 21 de Abril, na cidade do Porto Inglês, o Encontro Estratégico “Projectar o Maio para o futuro”. Coube-me a tarefa de discorrer sobre o tema “Que turismo para a ilha do Maio?”

Um enorme desafio que tinha tanto de honroso como de estimulante, tendo em conta que se tratava de um evento com a presença do Presidente da República, do ministro dos Assuntos Parlamentares, em representação do Governo, e de muitas outras instituições nacionais e internacionais, entre os quais os presidentes das câmaras municipais portuguesas de São João da Madeira e de Proença-a-Nova.

Aceitei o convite, precisamente pela audácia que o jovem, dinâmico e bem-falante presidente da ilha do Maio, Miguel Rosa, demonstrou em promover um encontro para debater o futuro da sua ilha. Um jovem político que fez um mestrado na Irlanda, num dos países mais inovadores do mundo, falando, portanto, inglês fluentemente, e a quem, a meu ver, só lhe falta aprender a jogar golfe e ténis para ter todos os skills de um político do futuro. Um jovem desta nova geração de cabo-verdianos bem formados que terão a obrigação de catapultar o país para outros níveis de desenvolvimento, primeiro porque irão receber um país muito melhor do que aquele que a minha geração recebeu, mas sobretudo porque, sendo jovens, ainda têm a capacidade de sonhar e ousar fazer, algo que a minha geração e as anteriores, condicionadas à partida pelos traumas de 500 anos de sobrevivência, vêm perdendo.

Afinando pelo diapasão, apresentei o sonho que tenho para a bonita e tranquila ilha do Maio, enviando à plateia um postal do futuro, no dizer de Eugénio Inocêncio.

Foi esse postal da ilha do Maio do futuro, do já próximo ano de 2030, que constituiu a minha apresentação e que descrevi na crónica anterior a esta.

Comecei por felicitar a organização pela designação de Encontro Estratégico. Para almejar o desenvolvimento, é preciso ter uma estratégia; e para tê-la é preciso primeiro ter uma visão, como ensina qualquer manual de pensamento estratégico.

E referi que tinha ouvido, durante os discursos de abertura, duas visões para a ilha completamente distintas e incompatíveis: o presidente da SDTBM (Sociedade de Desenvolvimento Turístico das ilhas da Boa Vista e Maio) falou num turismo que previa, inicialmente, a construção na ilha de cerca de 18 mil quartos em 20 anos, enquanto o presidente Miguel Rosa tinha falado num turismo de alto valor acrescentado.

Só para se ter uma ideia do que significam 18 mil quartos (equivalente a 36 mil camas), o arquipélago da Madeira, que recebe cerca de 1,1 milhões de turistas/ano, possui uma capacidade receptiva de 33 263 camas em 15 855 quartos (estatísticas de 2015). Mas a Região Autónoma da Madeira possui uma população residente de 256 mil pessoas, enquanto a ilha do Maio apenas é habitada por 7 mil almas, ou seja, 36,6 vezes menos população! A Madeira, considerada o melhor destino insular do mundo nos últimos anos, com hotéis que ganham prémios todos os anos nos Óscares do Turismo, tem um turismo com um rácio de cerca de 4,3 turistas/habitante, mais ou menos o que previ para a ilha do Maio em 2030. Prefiro não fazer as contas do que significariam, em termos de rácio, as 36 mil camas versus os 7 mil habitantes, mas por estes dados se pode aferir para onde caminhava Cabo Verde!

Voltando à apresentação, Eugénio Inocêncio, que me antecedeu com o tema “Os desafios do Turismo numa ilha como o Maio”, poupou-me imenso trabalho, ao referir-se à Boa Vista e à questão demográfica: considerou um absurdo que hoje a maioria da população da ilha seja constituída por pessoas vindas de outras paragens, transformando os boavistenses em minoritários na sua própria terra. Uma ilha que tinha a sua identidade própria e que foi completamente descaracterizada em poucos anos, perdendo o seu maior activo. E rematou dizendo que a nação verdiana não pode permitir que aconteça o mesmo na ilha do Maio (e em nenhuma outra ilha, acrescento eu).

Subscrevendo na íntegra as palavras do meu antecessor, repeti uma pergunta que tinha colocado à audiência na cidade do Mindelo 3 semanas antes: Estamos a criar riqueza nacional na ilha da Boa Vista?

Isto considerando que, apesar de a ilha da Boa Vista apresentar hoje o maior PIB per capita do país, a maioria das crianças que nasce hoje nessa ilha nasce e cresce em bairros de barracas, onde vivem os seus pais, que viajaram de outras ilhas à procura de uma “vida melhor”.

Se a riqueza é apenas medida através de índices economicistas, então, sim, estamos a criar riqueza na Boa Vista. Mas se riqueza é as pessoas viverem melhor, com saneamento, e terem o mínimo que tinham lá de onde vieram, então não estamos a criar riqueza nenhuma na ilha, até porque a qualidade de vida dos boavistenses era melhor antes deste turismo.

O turismo trouxe melhoria de qualidade de vida a milhões de pessoas neste mundo, mas não para os cabo-verdianos que vivem na Boa Vista. Quando não se tem estratégia é assim, vive-se a reboque de interesses alheios em prejuízo dos nossos, e durante a última década a única estratégia que houve foi deixar-nos arrastar pelos interesses imediatistas de outros.

O consultor Victor Fidalgo questionou-me sobre o que eu queria dizer com turismo de alto valor acrescentado, referindo que os turistas gastam em média 650/700 euros por semana no Sal e na Boa Vista. Respondi-lhe dando-lhe o exemplo do turismo de pesca desportiva que acontece em São Vicente, onde cada turista paga 1200 euros/dia só de aluguer de barco. Se contarmos hotel e os gastos nos bares à noite, esses turistas gastam num dia o dobro do que os turistas dos hotéis das ilhas ditas “turísticas”. Isto para citar um exemplo dentro de portas. O meu interlocutor referiu que deveríamos então, ao invés de estar a colocar metas de 1 milhão de turistas, estar preocupados em colocar como objectivo o aumento dos gastos dos turistas que temos. Assino por baixo, sem prejuízo de podermos continuar a crescer moderadamente, levando o turismo a outras ilhas onde há mais população e onde fica mais barato desenvolver o turismo.

Tive a oportunidade de, à margem da conferência, referir que já não é admissível não termos turismo no Tarrafal de Santiago, ou mesmo em outros locais da ilha maior, o que serviria para estancar as migrações que têm pressionado a cidade da Praia, com os resultados que sabemos. Idem aspas para as outras ilhas, todas elas turísticas.

Cabo Verde já conquistou o lugar de destino turístico mundial, e por isso já temos poder negocial. Como já referi diversas vezes, agora podemos dizer aos investidores onde, quando, quanto e qual o tipo de turismo onde queremos que invistam.

Fiquei muito satisfeito de saber que, nos últimos tempos, a actual administração da SDTBM mudou radicalmente a visão estratégica que havia encontrado para o Maio, convergindo com aquilo que defendi: turismo de baixa densidade e de alto valor acrescentado, diferenciação em relação às ilhas do Sal e da Boa Vista. Quase parecia que tínhamos acordado antes das apresentações, o que não foi o caso.

Pareceu-me haver uma clara convergência no que se quer para o Maio. Senti-o no grande número de jovens maienses que me cumprimentaram na rua e agradeceram por eu ter enfatizado que o turismo da ilha do Maio deve ser aquele que os maienses decidirem que querem ter.

A visão anterior da SDTBM baseava-se em calcular a capacidade de carga da ilha, através da simples medição dos km2 de praia e de linha de costa, e a partir daí fazer projecções para milhares de camas – ainda estávamos no tempo de medir a potencialidade turística das ilhas pelos quilómetros de praia (ou de montanha).

Existe uma visão diferente, que assenta no bem-estar e na felicidade das pessoas que vivem na ilha, que não se mede apenas com rácios economicistas – no modelo que apresentei, a capacidade de carga da ilha como superfície terrestre é substituída por um rácio entre turistas/habitantes, ou seja, quantos turistas por ano estão os habitantes locais dispostos a “aturar”.

Estamos a aprender que os turistas não viajam apenas por causa dos quilómetros de areia ou da altura das montanhas. Esse é o turismo mais fácil de desenvolver, o turismo baseado na paisagem, e por isso tivemos turismo primeiro nas ilhas com melhores praias e montanhas, situação que se irá alterar aos poucos no futuro, quando investirmos em formas mais elaboradas e complexas (e por isso mesmo muito mais rentáveis), como turismo urbano, cultural, de negócios e de golfe, as quais foram abordadas na Mesa-Redonda do Mindelo, sobre a qual nos debruçaremos oportunamente.

Num almoço na localidade de Calheta, vimos um bom grupo de batucadeiras a actuar e, logo de seguida, um grupo de jovens de 10-12 anos a dançarem uma mazurca aos pares de forma impecável. Abeirei-me dos presidentes das câmaras portuguesas, e de um jovem empreendedor irlandês que foi orador no encontro, e disse-lhes que tinham acabado de assistir a uma amostra do que é Cabo Verde: um batuque, que veio de África, e uma mazurca, originária da Polónia e que foi dança de salão europeia (hoje extinta nesse continente). As caras de surpresa de todos já eram esperadas: de facto, este país tem um enorme potencial turístico, do qual as praias e montanhas são a parte menor.

Muito haveria para dizer sobre este memorável encontro na ilha do Maio, uma ilha com uma estreita ligação cultural à vizinha ilha de Santiago, mas também com várias famílias proeminentes vindas da Boa Vista e de São Nicolau. Por essa razão, a ilha do Maio tem o crioulo mais bonito de Cabo Verde, metade Barlavento, metade Sotavento, tornando estéril qualquer debate sobre variantes dialectais da nossa língua materna. Os maienses resolveram da melhor forma essa questão, no seu jeito tranquilo e pacífico.

Esta é a ilha que produziu Betú, o maior compositor vivo de mornas, a música que melhor identifica a nação cabo-verdiana e que catapultou Cesária Évora para os palcos de todo o mundo. Foi com Betú que aprendi há alguns anos que a morna tal e qual a conhecemos é beleziana, fruto do génio de B. Leza, filho da mundana cidade do Mindelo. Não sei se será coincidência que o melhor discípulo de B. Leza, seja na perfeição das harmonias, na inteligência musical ou na beleza dos versos, tenha nascido na cidade do Porto Inglês. O quanto devemos ao contacto com o oceano Atlântico, este nosso continente...

No regresso, encontrei no aeroporto da Praia o presidente da Câmara Municipal de S. Vicente, que vinha da ilha espanhola de Maiorca, e que me disse que constatou por lá que realmente temos um grande potencial turístico, com o nosso clima privilegiado e as lindas paisagens que temos que não ficam a dever nada às ilhas turísticas deste mundo. Referiu isso, dizendo que o avião que o havia trazido da Europa tinha sobrevoado a ilha do Maio, e que ele tinha ficado extasiado com a beleza da ilha. Eu respondi-lhe que estava a chegar precisamente da ilha do Maio, onde tinha ido defender que as cidades do Mindelo e do Porto Inglês deveriam liderar uma iniciativa conjunta para ir fazer uma investida nacional no Reino Unido para angariar turismo residencial. Coincidência ou premonição?

No seu discurso de encerramento, o jovem Miguel Rosa afirmou, no seu timbre diplomático, mas enérgico, que os maienses não querem a repetição do turismo do Sal e da Boa Vista. Significa dizer que as gentes do Maio sabem perfeitamente o que não querem, e que mandam uma mensagem muito clara a todo o Cabo Verde e às suas autoridades.

Espero que a vontade dos maienses prevaleça. Se for o caso, terá valido a pena, e poderemos dizer, em 2030, que constatámos a partir da bela, pacata e recatada ilha do Maio, nesse longínquo ano de 2017, que já nessa altura Cabo Verde vivia realmente numa democracia plena, que não se resume apenas a eleições periódicas. Uma democracia moderna em que, em cada cantinho destas ilhas-diamante do Atlântico, os crioulos cabo-verdianos já eram donos do seu próprio destino.

Bem-haja a ilha do Maio e os maienses de todas as cores, raças e proveniências geográficas. Bem-haja Cabo Verde!

O sonho comanda a vida! Quem não sonha não alcança!

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 805 de 3 de Maio de 2017.

 

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Autoria:José Almada Dias,9 mai 2017 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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