Diários do Tarrafal

PorExpresso das Ilhas,4 jul 2017 6:38

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Neste navio embarcados
somos náufragos ancorados
Oh!
neste navio ancorado
somos náufragos embarcados
Oh! Navio!
Oh! Náufragos da terra longe!
Oh! Terra longe!
Oh! Terra!
Oh!

António Jacinto
Campo de Trabalho de Chão Bom, 28.12.65
(Sobreviver em Tarrafal de Santiago)

“Deve ser este o famoso Tarrafal, que reabriu quando mandaram para cá os angolanos. Parece um sonho vir cá parar.” Estas são palavras de Luandino Vieira em 13 de Agosto de 1964, então recém-chegado ao Tarrafal como parte de uma nova leva de presos políticos angolanos.
José Vieira Mateus da Graça (mais conhecido pelo seu pseudónimo literário Luandino Vieira) tinha sido transferido para o campo de concentração do Tarrafal em 1964, no âmbito do Processo dos 50.
Foi aí, mais concretamente em Chão Bom, num lugar árido e remoto do norte da ilha de Santiago de Cabo Verde, que o escritor recebeu, já muito tardiamente, a notícia de que Luuanda, o seu livro composto por três contos (“Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”; “Estória do Ladrão e do Papagaio”; “Estória da Galinha e do Ovo”), tinha sido premiado pela Sociedade Portuguesa de Escritores. Foi ainda aí que ficou também a saber que, afinal, o prémio lhe foi retirado pelos serviços de censura em Portugal, por causa do envolvimento político do autor na luta anticolonial em Angola, então província ultramarina de Portugal, nas terminologias jurídico-legais da nova constituição de Salazar.
Luandino passou oito anos no Tarrafal (1964-1972) como preso político, durante um tempo conturbado, mas foi no Tarrafal que ele escreveu não apenas parte substancial dos seus diários da prisão como a maior parte da sua grande obra literária. Para além dele, muitos outros tarrafalistas – europeus e africanos – deixaram memórias do tempo de cárcere, como o angolano Uanhenga Xitu (Os sobreviventes da Máquina Colonial Depõem...), o caboverdiano Pedro Martins (Testemunho de um Combatente) ou o português Edmundo Pedro (Memórias: Um Combate pela Liberdade).
Quanto à poesia (sobre a prisão política) do Tarrafal, é enigmática a produção poética do angolano António Jacinto, que também durante largos anos esteve enfiado no conhecido campo de concentração do Tarrafal (no pavilhão D, caserna 2, dos reclusos políticos de Angola), e deixou registado: a experiência do longo caminho de exílio (desta feita, em Cabo Verde); a vida no campo, por detrás das grades e do arame farpado, de onde não se via nem o Monte Graciosa e a Serra de Malagueta, nem as casas de pedra, os coqueiros ou o mar de Ribeira das Pratas; em suma, o quão triste era esse tempo em que não havia poesia.

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Um retângulo oco na parede caiada Mãe
Três barras de ferro horizontais Mãe
Na vertical oito varões Mãe
Ao todo
vinte e quatro quadrados Mãe
No aro exterior
Dois caixilhos Mãe
Somam
doze retângulos de vidro Mãe
As barras e os varões Mãe
projetam sombras nos vidros
feitos espelhos Mãe
Lá fora é noite Mãe
O Campo
a povoação
a ilha
o arquipélago
o mundo que não se vê Mãe
Dum lado e doutro, a Morte, Mãe
A morte como a sombra que passa pela vidraça Mãe
A morte sem boca sem rosto sem gritos Mãe
E lá fora é o lá fora que se não vê Mãe
Cale-se o que não se vê Mãe
e veja-se o que se sente Mãe
que o poema está no que
e como se vê, Mãe
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Mãe
aqui não há poesia
É triste, Mãe
Já não haver poesia
Mãe, não há poesia, não há
Mãe

Num cavalo de nuvens brancas
o luar incendeia carícias
e vem, por sobre meu rosto magro
deixar teus beijos Mãe, teus beijos Mãe

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

António Jacinto
Campo de Trabalho de Chão Bom, 13.2.68
(Sobreviver em Tarrafal de Santiago)

Tarrafal, um lugar que marcou a geração da independência. Em Cabo Verde, não houve luta armada, todavia Tarrafal é conhecido mundialmente enquanto um lugar de resistência. Salazar queria que esse fosse um lugar de má memória, por ter mandado aí construir um campo de concentração. Mas justamente esse lugar, pensado como espaço de deportação e prisão do Estado Novo, tornou-se o maior símbolo de luta anticolonial e antissalazarista, em Cabo Verde.
Durante o regime colonial, o campo de concentração do Tarrafal serviu para a punição, primeiramente, dos opositores metropolitanos ao regime fascista instalado em Portugal (Colónia Penal do Tarrafal, 1936-1954) e, posteriormente, dos anticolonialistas africanos (Campo de Trabalho de Chão Bom, 1961-1974). Para além disso, houve uma outra fase pouco falada, do Quartel do Tarrafal, e que teve lugar depois do 25 de Abril. É actualmente o museu da resistência do arquipélago de Cabo Verde e será brevemente candidato a património mundial da humanidade.
Papéis da Prisão - Trata-se de uma coletânea resultante de um projeto de investigação interdisciplinar, intitulado José Luandino Vieira: Diários do Tarrafal, sedeado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenado por Margarida Calafate Ribeiro, com o objetivo de tratar de um espólio literário e político, composto por 17 cadernos com anotações feitas pelo autor entre 1961 a 1972, referente ao tempo de cárcere deste escritor angolano, documentação até então inédita.
Tenho Trinta Anos, Estou Na Cadeia Há Quatro, baseada em alguns papéis da prisão de Luandino Vieira, entra em cena a 7 de Julho de 2017, pelas 19h, na Zona de Congressos do Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Esta peça de teatro é encenada por Jorge Silva Melo, assistida por Andreia Bento, e conta no elenco com os atores António Simão, Daniel Martinho, João Meireles, João Pedro Mamede, Jorge Silva Melo e Pedro Carraca. Trata-se, assim, de uma peça construída a partir de “notas, emoções, reflexões, factos, apontamentos, ‘bocados de nós próprios’, uma voz que teima em reter o tempo.”

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 813 de 28 de Junho de 2017

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Autoria:Expresso das Ilhas,4 jul 2017 6:38

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  30 jun 2017 13:01

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