Debaixo da Nossa Pele III: A minha mestiçagem e o fígado de Carla Cristina

PorExpresso das Ilhas,25 jul 2017 6:22

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É sabido como as manifestações de racismo no mestiço podem ser silenciosas e subtis.

Conscientes e inconscientes.

 Noutras vezes, são de clara afectação camaleónica. Ao contrário do negro não podemos dizer que haja muita literatura sobre a condição tão sui generis quanto intrigante do mestiço. Ensaios sobre o seu pensamento, suas angústias, sobre o seu lugar na sociedade, são textos raros. Não nos deparamos facilmente com um James Baldwin preocupado e reflectindo sobre a mestiçagem e a sua ambígua situação. Talvez por ser esta bem mais complexa e seguramente mais difícil de definir. Definir é classificar, com todos os equívocos e riscos que daí advêm. Finalmente, a mestiçagem, como todos sabemos, também pode ser cultural e não apenas epidérmica ou capilar.

A segregação racial definiu, ela sim, prontamente as suas regras, os hábitos e os costumes, sem esquecer as leis e as punições para os prevaricadores. Nada de lacunas ou vazios legais, disse o frio legislador. Por seu lado, o olhar do mestiço foi umas vezes contemplativo e outras distanciado; noutras, roçou-se mesmo um sentimento de alívio. Alguns terão colocado a sua condição ‘purgatória’ em risco por um dedo erguido em favor dos negros. Quase sempre viveu o mestiço em negação da sua negritude, o primeiro reflexo da sua crise de identidade. Teve de lutar contra essa dúvida e a incerteza constante que lhe causavam a auto percepção, e a consciência de que o lugar que ocupava na sociedade estava directamente ligado ao tom mais claro ou menos claro da sua pele.

Graças à nossa maior instrução infiltrámos o aparelho administrativo colonial português e tirámos vantagens em relação aos povos africanos dominados por eles. Basta recuarmos no tempo para encontrar a nossa indelével marca na infâmia que é o tráfico negreiro, na figura dos últimos capitães, como o foguense Caetano Nazolini, que lucraram com o negócio, como renegados do avanço civilizacional.

Na adolescência, em Lisboa, os meus colegas faziam de mim cúmplice das suas brincadeiras racistas mostrando-me, indirectamente, claro, até que ponto eu poderia passar por branco. A consciência mestiça procurou sempre abrigo e fez da proximidade cultural e racial ‘branca’ a sua zona de conforto. Umas vezes por uma questão de sobrevivência, devemos reconhecê-lo, mas quase sempre pela negação pura e simples dessa área obscura e desconhecida.

Os diferentes tons de pele sempre existiram na nossa família. Aparentemente, o tema em si é aquilo a que se poderá chamar de um não-assunto, mesmo que nunca tenha ouvido a minha mãe dizer que fulano ou sicrano era um preto alto e bonito de olhos negros, da mesma forma como se derretia ao apontar alguém alto, branco branco d’ odj azul. O seu pai Francisco ‘Nênê’, era branco d’ odj claro, naturalmente.

A cultura preconceituosa fez de nós falsos brancos e pretensos aprendizes de colonizadores nas relações com os povos do continente. A triste veleidade revelava-se sempre que o capataz natural das ilhas substituía o chefe de posto local branco ou o administrador de concelho nas suas prolongadas férias graciosas na metrópole. E sempre que bebíamos uísque ao entardecer ou jogávamos ténis com os colonizadores, experimentávamos, por momentos, essa vertigem do até podíamos ser nós. A condição social de quase-brancos permitia-nos frequentar festas e bailes das sociedades locais, e no meio da vertigem e da animação perdemos o norte e criámos o hábito de chamar indígenas e desprezar aqueles cujo sangue corria também nas nossas veias. Um colaboracionismo velado, hoje bastante incómodo, silenciado. Uma história ainda por contar.

Séculos de isolamento criaram o fosso e aprofundaram esta aversão e distanciamento cultural para com o ‘gente gentio’, os mais negros do que nós, os mais distanciados dos ‘valores dignos do progresso civilizacional’. E embora os nossos marinheiros tivessem convivido com estes homens, nas suas viagens pelo mundo, nunca se consideraram iguais, mesmo sendo a sua tez em tudo idêntica. A expressão preta fina, tão cara às gerações mais velhas, delega no adjectivo a principal missão de resgatar a pessoa da sua cor de pele indesejável, atribuindo-lhe, ainda assim, uma qualidade especial no cambiante dos tons da negritude.

Pelo menos uma vez na vida somos confrontados com a mesma angústia de Joe Christmas, atolado no mistério da sua obscura origem negra. Experimentámos sentimentos contraditórios que constituíam a carne deste mestiço sulista, saído da pena de William Faulkner, em Luz de Agosto. Recordo-me como me marcou igualmente o abismo de Coleman Silk, de Philip Roth, o enigmático professor catedrático de A Mancha Humana que preferiu cortar caminho e fazer-se passar por judeu, namorar mulher branca e fugir à nódoa do destino de seus pais e avós.

A dúvida existencial era se seríamos, de facto, pretos, como afirmavam alguns colegas da minha escola primária.

Talvez tivessem sido levados pela quantidade de pessoas de pele escura que subiam e desciam as escadas do nosso prédio ou dos familiares que me iam buscar à escola.

Está também ainda por escrever a história da perversidade entre as crianças.

Nunca soube ao certo a que categoria pertencíamos. Na maior parte das vezes estávamos mais próximos deles, em especial quando víamos um luzidio Ricardo Chibanga ‘triunfando’ na arena do Campo Pequeno. Aos brancos, os mais velhos referiam-se-lhes sempre como mandrongo, uma palavra hoje claramente em vias de extinção (em bebé, as minhas irmãs mais velhas chamavam-me mandronguinho) No meio disto tudo, as pessoas de pele clara só contribuíam para aumentar ainda mais a minha confusão. A tia-avó Tanha era escura e tinha o nariz adunco de índia americana, com tranças brancas até ao peito; por seu lado, a tia Mana era inequivocamente branca. Usava peruca sixties e óculos de sol como Jackie Kennedy e ria tão alto como as mulheres brancas ricas, mostrando os seus dentes alvos e uniformes. No entanto, o tio José, que na verdade não era tio mas primo em segundo grau, era completamente escuro.

Nos anos sessenta, dois outros tios marinheiros, Simão e Salomão, naturais do Campinho, São Nicolau, foram barrados à porta de um clube nocturno, em Jacksonville, nos Estados Unidos. Contaram que de início não entenderam muito bem o que se estava a passar, pois estavam bem vestidos, de fato e gravata como qualquer um daqueles clientes americanos. Uma semana antes tinham-se divertido em Panamá City, e preparavam-se para mais um fim-de-semana de festa na Florida. Mas o clube era só para brancos - whites only, respondeu-lhes o porteiro.

Na verdade, apesar de claros de pele, nenhum deles tinha cabelo fino de branco caucasiano. Ambos tinham narizes e lábios suaves e eram altos e magros, com mãos ossudas e compridas. Costumavam usar grandes anéis de ouro e fios de prata ao pescoço, e sempre que desembarcavam em Lisboa passeavam pela Baixa altivos e orgulhosos, como se acabassem de adquirir alguns dos quarteirões da parte velha da cidade. A realidade é que, nós os mais novos da família, éramos cabo-verdianos dentro de casa e portugueses na rua, pelo menos para as outras crianças do bairro. E eu, o único filho de pai português, o único irmão de cabelo liso, tinha as portas abertas, como um príncipe.

Então, no início dos anos oitenta aconteceu algo que acabou por abalar ainda mais os alicerces do meu frágil edifício identitário. A notícia não estava assinada e a história do Canibal de Odivelas, que espalhou o medo e a desconfiança entre as famílias portuguesas, vinha em forma de uma simples coluna. E este é um daqueles momentos que se pode chamar de verdadeira catarse social.

Foi publicada no jornal O Jornal, a 13 de Março de 1981 e começava por referir o acto surpreendente e trágico de canibalismo que agitara, a semana anterior, o país. Carla Cristina, uma menina de oito anos, fora atacada e assassinada por um cabo-verdiano.

Não contente o indivíduo devorou-lhe ainda partes do ventre.

Tudo acontecera, segundo o jornal, em Odivelas, às portas de Lisboa, depois de a menina sair de casa bem cedo para comprar pão e leite. Augusto Dias Martins, de 30 anos, servente de pedreiro numas obras ali perto, atacou-a com uma faca, exigindo os alimentos que ela trazia consigo. O pai da menina, Francisco Figueiredo, contou que quando a sua mulher chegou à porta já o cabo-verdiano estava a comer a sua menina aos bocados. Tinha um corte na orelha e dois buracos na barriga. Apesar da presença dos pais, o homem continuou a sua tarefa. Só depois de o ter atacado com uma pedra ele fugiu, levando pedaços do fígado da jovem Carla nas mãos e na boca. Foi dizendo pelo caminho que a tinha matado e comido, que já tinha saudades de comer carne humana e que ainda lhe restavam mais três…

No lado direito da notícia, um anúncio de três quartos de página, de uma companhia de seguros, mostrava uma mãe segurando um bebé nos seus braços. Em baixo a frase, O meu filho tem mais um amigo, um amigo seguro… um amparo… um companheiro para os momentos difíceis.

Dias depois, um rumor posto a circular na cidade de Beja dizia que o cabo-verdiano em causa havia fugido da cadeia e fora visto nas redondezas acompanhado dos irmãos, numa espécie de horda canibal. O pânico instalou-se nas escolas primárias e infantários do Alentejo. Em Lisboa, as famílias passaram a recolher mais cedo os seus filhos, sobrinhos e netos.

Dois longos artigos no mesmo jornal abordaram o insólito episódio do ponto de vista daquilo que terá chocado mais as pessoas: a antropofagia, cometida ali mesmo na rua, na sua cidade. E para melhor compreender o fenómeno e afastar o espectro de linchamentos públicos, foram recolhidas opiniões de professores universitários e psicólogos.

 Explicar o inexplicável, o horror num país de brandos costumes.

D. Pedro também mastigara o coração dos assassinos da sua amada Inês, num gesto de pura loucura em forma de amor, capaz de emocionar ainda hoje o mais simples dos plebeus. Augusto Dias Martins, o negro das ilhas, alimentara-se, vorazmente, da menina ainda viva.

Um misto de repulsa e fascínio.

Brandos costumes empapados em sangue.

Na verdade, nunca consegui compreender as explicações apresentadas pelo jornal português para aquele acto:

1) a loucura como resposta à humilhação do imigrante e a ruptura dirigida contra os mais velhos e as crianças, os mais expostos e mais fracos;

2) a vontade de ser branco, amado e puro – coisas que, como escreveu o articulista na altura, o imigrante de Cabo Verde consubstanciou numa criança inocente, como justificação para sorver o fígado de Carla Cristina.

O órgão em questão também não resultou de um acaso. Estava-se a falar do mais nobre de todos, mais até que o próprio coração, insubstituível, onde se acreditava estar a alma, a força e a personalidade dos indivíduos.

A imagem do cabo-verdiano mastigando as entranhas da menina lançou um sentimento de terror pelo país e o caos na minha consciência de filho de imigrantes. As pessoas passaram a sonhar com exércitos de negros malvados e o mais leve comportamento suspeito era de imediato denunciado nas esquadras da polícia. A vigilância foi apertada nos transportes públicos e ameaçaram com uma caça-às-bruxas em massa contra cabo-verdianos estudantes, trabalhadores das obras e empregadas domésticas. À porta dos cafés do bairro e a coberto da minha secreta mestiçagem, escutei conversas de operários metalúrgicos, ex-combatentes do Ultramar, revoltados contra a pretalhada turra de Cabo Verde, que agora comia crianças inocentes.

Durante anos, uma imagem obscura de Augusto Dias Martins, provavelmente sintetizada dos poucos naturais da ilha de Santiago que eu conhecia, acompanhou-me por toda a parte. Assim como a prostração dos pais ante a menina inocente ensanguentada, que para a maioria dos leitores do jornal não era mais do que outro episódio na fileira dos destinos humildes e dolorosos. O trágico incidente acordava em mim a ideia de recriminações da má sorte e da fadiga que um episódio tão tremendo poderia provocar para o resto da vida, ou de que como coisas tão inexplicáveis poderiam acontecer, com o romper de mais um dia. Nada conseguia apagar os vislumbres de raiva e de ternura de um pai para sempre mutilado ou de um doente mental falando horas a fio para um canto da sala do manicómio. Talvez sonhasse com espigas de milho dos campos do planalto de Santa Catarina, altivas ao vento, mas que, como sabemos, podem ser também metáforas douradas da imperfeição do mundo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 816 de 19 de Julho de 2017

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Autoria:Expresso das Ilhas,25 jul 2017 6:22

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  21 jul 2017 12:44

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