Reler Zora Hurston

PorExpresso das Ilhas,16 ago 2017 6:07

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Uma vez perguntaram-me qual o meu livro preferido. Sem hesitar, respondi: Their Eyes Were Watching God, de Zora Neale Hurston. Primeiro vi o filme por acaso, numa das sessões de African American Studies Film Series, na Universidade de Boston, em Setembro de 2010. Só depois é que encontrei o livro, com o posfácio do professor Henry Louis Gates, Jr., que tive a alegria de conhecer naquela altura. Trouxe a versão em inglês dos Estados Unidos e, mais tarde, encontrei uma edição portuguesa na estação de correios da Avenida Fernão Magalhães, em Coimbra.

Obra-prima de Zora Neale Hurston (1891-1960) e uma das mais importantes da literatura norte-americana do século XX, publicada pela primeira vez em 1937, Their Eyes Were Watching God conta a história de uma mulher negra que embarca numa longa viagem de autodescoberta. Janie Crawford, aos 16 anos, é uma jovem desempoeirada obrigada pela sua avó moribunda a casar com Logan Killicks, um homem mais velho e grosseiro, que ela despreza e descarta na primeira oportunidade. Janie decide fugir com Joe Starks, um homem citadino cheio de sonhos e projectos ambiciosos. Juntos seguem para Eatonville. Ali, mal chegam, Joe conquista um lugar no coração do primeiro condado negro em construção, tornando-se o primeiro presidente da Câmara Municipal, chefe dos correios, lojista e proprietário de terras. A ambição pelo poder torna frágil a relação deste casal. Com a morte de Joe, Janie liberta-se das convenções matrimoniais. Ignorando as más-línguas de então, ela apaixona-se e entrega-se de corpo e alma ao amor de um jovem trabalhador de espírito livre, muito mais novo do que ela. Tea Cake e Janie protagonizam esta emocionante história de amor e de liberdade no Sul dos EUA, então marcado pelas leis segregacionistas e em plena luta pela afirmação das comunidades dominadas e racialmente marginalizadas. Através do amor, Janie reencontra a paz interior que tanto procurava.

A narração dessa história muda da terceira pessoa para uma mistura de primeira e terceira pessoas, desenvolvendo uma trama a partir da experiência das mulheres afro-americanas, jovens e que prezam a sua individualidade contra os apelos moralistas de uma comunidade dominada onde as mulheres são evidentemente as que mais sofrem de todas as discriminações racistas e sexistas. Mas, longe de qualquer vitimização, a história ganha pelo realismo e pelo conhecimento profundo da vivência numa pequena comunidade, longe do asfalto e das luzes das grandes cidades norte-americanas. Tão bela é a história contada que a apresentadora Oprah Winfrey considera que esta é a sua «história de amor favorita de todos os tempos», tendo, por isso, optado por produzir um filme baseado neste romance e escolhendo como actriz principal a bela Halle Berry.

Para além do romance e do filme, fiquei encantada com a história de vida dessa escritora afro-americana. Zora, romancista e antropóloga, nasceu a 7 de Janeiro de 1891, em Alabama, tendo vivido em Eatonville, Flórida, desde a sua infância. Foi aluna de Franz Boas. Teve uma carreira de altos e baixos, durante mais de 30 anos. Foi contemporânea de grandes escritores afro-americanos entre o período do Harlem Renaissance e o fim da guerra da Coreia. A norte-americana Toni Morrison, a única mulher negra Nobel da Literatura, considera que «Zora Neale Hurston é uma das maiores escritoras do nosso tempo». Contudo, ela foi silenciada depois do início dos anos 50 e recuperada só no final dos anos 70. Tornou-se uma referência da literatura norte-americana e um diamante da comunidade negra. Durante a sua vida, ela foi aclamada, teve glamour e uma vida intensa, com amores e desamores. Porém, em 1945, olhando para o caso de muitos dos seus colegas negros e pressentindo que também ela iria morrer na miséria, decidiu persuadir W.E.B. Du Bois a comprar um terreno baldio na Flórida para criar um cemitério de afro-americanos ilustres, a fim de não serem enterrados numa vala comum. Dizia ela, «temos de assumir essa responsabilidade, para que as suas sepulturas sejam conhecidas e honradas». À primeira, W.E.B. Du Bois torceu o nariz, mas acabou por aceitar.

Pouco tempo depois, ela morreu na miséria total, a 28 de Janeiro de 1960, aos 69 anos. Teve um funeral miserável, que só não foi pior porque os seus vizinhos organizaram um peditório para custear as despesas mínimas, sem direito a uma pedra tumular. Foi enterrada numa sepultura cuja identificação aconteceu em 1973. Na altura, meados dos anos 70, a então jovem escritora afro-americana Alice Walker (a autora de The Color Purple) fez uma longa viagem para colocar uma pedra tumular na sepultura de Zora, no cemitério segregacionista Garden of the Heavenly Rest, em Fort Pierce, na Flórida. Alice Walker encontrou o cemitério abandonado, com cobras, e cercado de ervas daninhas que lhe chegavam à cintura, numa rua sem saída. Depois, com os poucos recursos que tinha, conseguiu comprar uma pedra tumular (não aquela que pretendia), mas uma lápide cinzenta e simples, ornamentada com um epitáfio: «Zora Neale Hurston, Um Génio do Sul». Depois desse gesto de Alice Walker e dela mesmo ter-se inspirado no trabalho da escritora morta, Zora Neale Hurston tornou-se uma referência incontornável da literatura norte-americana.

Nos dias de hoje em que presenciamos ao regresso da ficção histórica romantizada, acompanhada muitas vezes de amnésia selectiva e ambíguas fantasias em tons celebratórios ou ressentidos, vale a pena seguir por outros caminhos da literatura e do cinema. Fica assim este livro da Zora Hurston como um exemplo da boa literatura e de como é possível construir diálogos para lá de todas as fronteiras e muralhas.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 819 de 9 de Agosto de 2016. 

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Autoria:Expresso das Ilhas,16 ago 2017 6:07

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  11 ago 2017 16:13

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