AR LIVRE: Macaronésia Política

PorExpresso das Ilhas,14 set 2017 6:20

10

Cabo Verde situa-se ao largo da zona tropical do Atlântico Norte na extremidade ocidental da faixa do Sahel. É de modo crítico, ou fascinante, que se anima a hipótese deste arquipélago ter sido conhecido antes das navegações portuguesas do século XV. Para isso concorrem o mistério da Rotcha Scribida na Ribeira da Prata (ilha de São Nicolau), assim como da Pedra do Letreiro na Ribeira de Janela (ilha de Santo Antão). Ambas suscitam controvérsias.

Em relação à Rotcha Scribida, aponta-se que poderá ser um simples fenómeno natural, indícios da presença de Jalofos ou até inscrições de piratas. Recorde-se que, no conhecido romance Chiquinho, Baltasar Lopes fala da “Rocha-Escrevida, em que há letras inscritas pelos piratas, quando desembarcavam aos tiros na praia agreste, atraídos pelo verde dos canaviais”.

Ao falar das referências a inscrições rupestres em Cabo Verde, abarcando o caso da Rotcha Scribida em São Nicolau, “topónimo que serviu de tema para uma das mais conseguidas mornas características daquela ilha”, João Lopes Filho recorda, no seu texto sobre Alguns Mitos Relacionados com Cabo Verde, que “há quem diga que originalmente o nome daquele local seria Ribeira dos Piratas e não Ribeira da Prata, que a tradição diz resultar do reflexo do sol nas suas águas”. Sendo assim, “as pretensas inscrições nela apostas e sempre presentes no imaginário sanicolaense, são apresentadas como testemunho deixado por antigos habitantes”. Entretanto, conclui Lopes Filho que, no final das contas, acabaram por ser consideradas “como sendo um mero fenómeno natural”.

Quanto à Pedra do Letreiro, fica por descodificar se as inscrições humanas seriam de germânicos, escandinavos, berberes ou portugueses. João Lopes Filho tece também considerações sobre a alusão a que fazem em relação  às “inscrições existentes na Janela, Santo Antão, como tendo sido insculpidas antes da chegada dos europeus, possivelmente por piratas. Efectivamente, na face voltada para o mar da Pedra do Letreiro sita na embocadura da Ribeira do Penedo, encontra-se gravada uma frase encimada por uma cruz. Embora ainda não se ter cuidado em providenciar estudos epigráficos com vista à datação desse letreiro rupestre em que, apesar de bastante corroído pelo tempo e encoberto pelo vandalismo, conseguem-se decifrar a palavra ‘Diogo’(?) e à frente as letras PTO, que podem corresponder a ‘Pinto’(ou a siglas de ‘Cristo’), acrescidas de  ‘António a fez’ (em português numa caligrafia semelhante à de muitos documentos antigos), para além de a cruz (símbolo do cristianismo) só ter chegado à África com os europeus. Estando a referida pedra muito próxima do ancoradouro da Janela, levanta-se a hipótese de alguém falecido a bordo de alguma embarcação ali aportada, tenha sido enterrado naquele local (haja em vista a cruz que a remata), ou então um possível testemunho deixado pelos primeiros ocupantes europeus da ilha.”

António Carreira, no livro Migrações nas Ilhas de Cabo Verde, e Elisa Andrade, em As ilhas de Cabo Verde: Da «Descoberta» à Independência Nacional (1460-1975), não descartam a hipótese de que, antes da chegada de navegadores a serviço da coroa portuguesa, pelo menos algumas das ilhas eram acidentalmente conhecidas por povos africanos da orla marítima do continente fronteiriço, eventualmente Jalofos, Sèrères e Lêbús, ou ainda por gregos e geógrafos árabes.

Um relato histórico anónimo, datado de 1784, que tem sido bastante citado pelos estudiosos, assegura que: “Esta ilha [Santiago] se achou já habitada de muitos homens pretos, que por tradição se dizia ter procedido de um rei Jalofo, que por causa de uma sublevação, tinha fugido do seu país com toda a sua família a buscar refúgio, em uma canoa, na costa do continente, mas porque foi acometido de uma veemente tempestade [...] o ímpeto dos ventos fez aportar a canoa nesta ilha, que fica a oeste do mesmo Cabo Verde” (apud Lopes Filho).

Porém, para Luís de Albuquerque, que debruça sobre este tema na colectânea História Geral de Cabo Verde, “mesmo que as vagas informações de tais reconhecimentos viessem a ser consideradas prováveis, essas visitas foram certamente esporádicas, nunca deram lugar a uma ocupação, e fizeram de tal modo esquecidas que os obscuros indícios de que elas se teriam realizado só voltaram a ser falados depois de navegadores do século XV terem chegado às ilhas.”

Christiano José de Senna Barcellos, em Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, recorda que alguns supõem que “estas ilhas já eram conhecidas dos antigos geógrafos com o nome de Hesperidas ou Gorgonas, como diz Plinio.” Porém, este historiador refuta tal ideia.

Não bstante, no segundo quartel do século XX, coube aos poetas José Lopes da Silva e Pedro Cardoso a reinvenção poética do mito da Atlântida e das Hespérides, idealizando a ascendência atlante das ilhas caboverdianas e, por esta via, não só inventando um passado lendário quanto à génese do arquipélago como transgredindo o quadro de referência real e psicológico circunscrito à tradição do colonialismo.

No texto sobre as “Itinerâncias macaronésias: Mito e Discurso Científico na Obra Pseudo-heteronímica de João Varela”, Ana Salgueiro Rodrigues nota que, efectivamente, “estes mitos clássicos e judaico-cristãos, entre os quais [se destacam] os das Ilhas Afortunadas, da Atlântida, das Hespérides, da Ilha de São Brandão ou até do Éden, continuaram a ser actualizados ao longo dos séculos pelas culturas modernas e, em particular, pelas culturas insulares atlânticas que tomaram esse imaginário como seu.” É por essa via que a autora enquadra, por exemplo, os contos da macaronésia do cabo-verdiano G. T. Didial. Recorda que “cunhado no século XIX pelo geógrafo e botânico inglês Phillip Baker Webb (1793-1853), a partir dos étimos gregos makaron (afortunado) e nesoi (ilhas), para, no âmbito da biogeografia, designar cientificamente a região atlântica situada entre as latitudes 15ºN e 40ºN que abrange os arquipélagos dos Açores, da Madeira, das Selvagens, de Canárias e de Cabo Verde, Macaronésia, não deixando de ser um termo científico, dotado, nessa exacta medida, de um sentido unívoco comporta também na sua etimologia o eco de diversos mitos insulares que os imaginários ocidentais, desde a antiguidade, cartografaram nebulosamente para além das colunas de Hércules.”

Por sua vez, em Cabo Verde: Viagem pela História das Ilhas, Germano Almeida informa que “Cabo Verde é tido como fazendo parte de um conjunto denominado Macaronésias [...]; todo o arquipélago é de origem vulcânica e dispõe-se no espaço do mar em forma de uma ferradura com a abertura virada para o ocidente, como se propositadamente tivesse sido feito de costas voltadas para uma África com a qual ainda hoje não aprendeu a conviver.”

Em 2014, numa conferência na cidade da Praia, o geógrafo José Maria Semedo trouxe também uma abordagem complementar, bastante esclarecedora, sobre o ressurgimento do mito da Atlântida, a partir das actuais relações externas de Cabo Verde, para chegar ao que hoje se poderá conceber como uma espécie de macaronésia política. Com efeito, da literatura à política, estas narrativas são de suma importância para se entender as derivações e os imaginários insulares.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 823 de 06 de Setembro de 2017. 

 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Expresso das Ilhas,14 set 2017 6:20

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  8 set 2017 19:15

10

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.