Debaixo da nossa Pele VI: Gaius Diocles, o ‘Cristiano Ronaldo’ de Roma

PorExpresso das Ilhas,10 out 2017 6:30

Num restaurante da cidade alentejana de Alcácer do Sal, um homem num fato escuro aproxima-se de duas estrangeiras, sentadas a uma mesa, e, numa delicadeza branda  e nostálgica, inicia uma conversa com elas. O inglês enferrujado de ex-emigrante é suficiente para o indivíduo entabular um diálogo desapaixonado e dar-lhes conta de que trabalhou alguns anos numa fábrica de peixe, na Terra Nova, no Canadá. Elas são holandesas, respondem-lhe com uma remota simpatia, viajam sozinhas por Portugal. Na parede da sala, o jogador Cristiano Ronaldo sorri, triunfante, num poster, com um pequeno troféu metálico entre as mãos. Oiço quando o homem aponta para a parede e diz algo como o mais caro jogador do mundo ou o melhor jogador do mundo.... A conversa deixa o trivial quando individuo consegue, finalmente, atrair a atenção das duas jovens turistas para a história da antiga Salacia Urbs Imperatoria, e fazer-lhes um retrato exageradamente entusiasmado da cidade de Alcácer enquanto romana.

It was a salt region, oh, yes, very rich city with many salt mines.                                                                 

Com os olhos no poster do astro do futebol português, e enquanto termino o meu jantar, hesito um pouco em falar-lhe de Diocles, esse corredor de quadrigas do Circo Máximo de Roma, que também, dizem, terá pernoitado sob o céu de Salacia Imperatoria Urbs. Há quem defenda que o lusitano Gaius Appuleius Diocles passou por aqui, a caminho das corridas do hipódromo de Miróbriga. Apesar de ficar longe da sua Emérita Augusta natal (a Mérida espanhola), Miróbriga, a actual Santiago do Cacém, um pouco mais a sul de Alcácer, possuía o maior hipódromo deste lado da Lusitânia romana, cujas ruínas podem ser vistas, ainda hoje, nos arredores da cidade alentejana.

Perguntei se o homem teria alguma vez ouvido falar deste jovem que, no ano de 120 DC, e contando apenas dezasseis anos, se sagrou campeão da Hispânia. Não falta quem diga que é graças ao dinheiro dos ricos comerciantes do sal de Salacia Imperatoria Urbes, grandes aficionados das corridas de quadrigas, que Diocles consegue mudar-se para a capital do Império, com o mesmo fascínio com que o jovem Cristiano terá entrado em Old Trafford, o mítico estádio do Manchester United.

Mito ou não, é um mundo totalmente novo que se abre para o jovem corredor.

Com uma área doze vezes maior do que o Coliseu, o Circus Maximus de Roma pode acomodar cerca de cento e cinquenta mil entusiastas nas suas bancadas de madeira. Mas no auge da sua importância, que coincide com a chegada de Diocles, o espectáculo consegue atrair até um quarto da população da cidade, ou seja, mais de duzentos e cinquenta mil romanos, espalhados pelas colinas de Avantina e Paletina.

A pista oval, de terra e areia, com um comprimento máximo de 920 metros e 150 de largura, estava dividida ao meio pela Spina. Nas extremidades erigiam-se dois obeliscos, permanentemente manchado de sangue, já que era aqui que se davam a maior parte dos acidentes mortais. Apostadores, agiotas, ladrões e prostitutas instalavam-se junto às entradas. À volta dos estábulos dezenas de tratadores, veterinários e de escravos faziam tudo para manter a boa forma dos animais. Após alguns números de entretenimento, como a decapitação ou o esventramento de escravos, a pista era limpa, as trompas anunciavam a chegada da procissão das quadrigas, que se alinhavam para a partida. Dos quatro cavalos da quadrigae, o mais importante e de maior confiança do corredor é o que fica alinhado do lado interior. A volta na extremidade da Spina é menor e este deve controlar a rapidez da manobra e o movimento dos restantes três cavalos.

Os quatro estábulos concorrentes mais importantes definem-se pelas suas cores: a factio albana (brancos), a factio praesina (verdes), a factio veneta (azuis) e a factio russata (vermelhos) – que, diz-se, terá inspirado a Ferrari.  À sua chegada a Roma, aos dezoito anos, o lusitano Diocles alinha na equipa dos brancos durante seis anos. Mas só no segundo ano consegue a sua primeira vitória. Tem uma passagem de três anos pelos verdes, antes de entrar definitivamente para os vermelhos. Nunca fará parte dos azuis.

O auge de uma carreira nas quadrigas atinge-se aos vinte e dois, vinte e três anos. Os acidentes são muito frequentes e quase sempre fatais. Apesar do corredor ser o dono das rédeas e do chicote, num só segundo pode perder o controlo da situação, perder uma roda e ser atirado contra as barreiras. Plínio o Velho aconselhava o tratamento das horríveis feridas dos corredores de quadrigas com esterco de javali bravo colhido na Primavera e depois de seco, ou aplicado fresco sobre os ferimentos ou ainda cozido em vinagre. Era também comum o uso de ópio para o tratamento das dores. Se não fosse pelas infecções a morte podia chegar pouco tempo depois, e de forma violenta, normalmente entre os vinte e os vinte e cinco anos, num daqueles acidentes a que os romanos designavam por naufraga.

Fuscus morreu aos vinte e quatro, Crescens aos vinte e dois, Aurelius Mollicius aos vinte.

Os poucos que sobrevivem retiram-se normalmente por esta altura.

De cada vez que coloca o elmo e as protecções de cabedal, Diocles sabe que a morte espreita em cada uma das voltas, como na célebre a cena da disputa dos corredores do filme Ben-Hur, de William Wyler.

Antes de cada partida tem de se certificar que as rédeas estão bem amarradas aos pulsos e que a faca para as cortar em caso de acidente está ali ao seu alcance. O barulho que vem das bancadas e das colinas em redor é caótico e ensurdecedor. A histeria aumenta à medida que o aedile se prepara para dar o sinal de partida. Ovídio, na sua obra Amores, registou com grande realismo e humor o ambiente vivido entre as diferentes classes sociais que seguiam com ansiedade o desenrolar da corrida nas bancadas do Circo Maximo. Diocles e Pompeianus, o principal cavalo da quadriga, mostram-se serenos e expectantes. A sua confiança no animal e as 150 vitórias que ambos somam, das quais 100 em apenas um ano, fazem dele um elemento indispensável na equipa.

Outros como Lucidus, Abigeius, Cotynus e Galata, cavalos africanos e espanhóis, ajudaram a fazer dele o conquistador do Circo Máximo, com mais de 400 vitórias. Levaram-no de pobre e analfabeto a um homem rico e respeitado por todo o império. Depois dos corredores, os cavalos são as grandes estrelas do Circo Máximo, chegando alguns a ser mais famosos do que os próprios poetas, como foram os casos de Andraemon e Polydoxus. O jovem imperador Calígula costumava enviar soldados para fazer calar a multidão, para não enervar os animais. Incitatus, o seu cavalo preferido, gozou da maior das mordomias destes tempos: um estábulo totalmente em mármore, mantas de cor púrpura e um colar de jóias.

Suetonius escreve como chegou mesmo a correr o rumor de que o jovem imperador tencionava fazer Incitatus cônsul romano.

Alinhados na pista estão ainda outros corredores, cuja função é trabalhar para que a superestrela da sua equipa acabe a corrida em primeiro. Esta começa e aos primeiros acidentes a multidão explode num furor circenses amplificado pela grande quantidade de vinho que circula pelas bancadas. De cada vez que um carro choca e é arrastado pelos cavalos, a multidão vibra e bate palmas. Cada corredor sabe que uma vitória fará dele um homem rico e famoso, por isso não olhará a meios para tirar os oponentes do caminho. Mas Diocles, como defendem os seus admiradores, é amado por Jupiter, Castor e Pollux, deuses que protegem os eleitos.

Ao fim de cinco voltas, Pompeianus guia os restantes cavalos com firmeza impondo o ritmo acelerado. Nas duas que faltam vai ganhando terreno aos restantes, numa sintonia mecânica, entre corredor e equídeos, que ficará nos anais da história das corridas.

No ano 146, o lusitano Gaius Apuleius Diocles retira-se aos 42 anos, com um total de 1463 vitórias em 4257 corridas, tendo ficado 861 vezes em segundo lugar e 456 em terceiro. Diocles bateu também as marcas lendárias de Comunis Venustus e Pontius Epaphroditus, dois corredores dos azuis. Mas ficou ainda longe das 3559 vitórias de Pompeius Musclosis (verdes) e das 2048 de Flavius Scorpas (este mesmo antes de completar vinte e sete anos).

No entanto, era um corredor que sabia como poucos gerir a sua carreira, seleccionando as corridas consoante o valor dos prémios em disputa. A fortuna que acumula ao longo da sua invejável carreira de agitator, durante os reinados de Adriano e António Pio, a astronómica soma de 35.863.120 de sestércios - 10 mil milhões de euros em moeda actual - confere-lhe o título do atleta mais rico de todos os tempos, com uma fortuna invejável, capaz de empalidecer a estrela Cristiano Ronaldo. Outra diferença entre Gaius Diocles e os restantes corredores do seu tempo é que ele viveu o tempo suficiente para gozar os proveitos e a fama que a carreira lhe trouxe.

Diocles nunca regressou à Lusitânia. Retirou-se com a família e alguns dos seus cavalos preferidos para a tranquila vila de Praeneste (actual Palestrina, nos arredores de Lacio), na encosta de uma colina, disfrutando da tranquilidade da vida no campo até à sua morte. Uma lápide erigida no local pelos seus filhos e outra, em Roma, pelos seus admiradores, enumeram para a posteridade todos os seus triunfos, com as seguintes palavras introdutórias: Gaius Apuleius Diocles, corredor de quadrigas dos Vermelhos; Hispânico de 42 anos, 7 meses e 23 dias. Conduziu a sua primeira quadriga pelos Brancos, em 122 DC. Obteve a sua primeira vitória com esta mesma equipa pouco tempo depois. A sua primeira vitória pelos Vermelhos aconteceu em 131 DC.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 827 de 04 de Outubro de 2017. 

 

 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Expresso das Ilhas,10 out 2017 6:30

Editado porRendy Santos  em  6 out 2017 16:18

pub.

Rotating GIF Banner

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.