Ar livre: A preta Fernanda no coração do império

PorExpresso das Ilhas,20 out 2017 6:23

1

 

Em Portugal, na sequência do Ultimatum britânico de 1890, assistiu-se a uma reafirmação da soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos. Então, propagavam-se os sentimentos imperialistas e de decadência do império, além de que começavam a despontar as teses racistas sob a direção de Eusébio Tamagnini.

No âmbito da divulgação cultural, desse período finissecular aos primeiros anos da centúria seguinte, os historiadores apontam que, na capital do império, havia uma proliferação de grandes espaços públicos de espetáculos, mormente o Coliseu dos Recreios (1890), a Praça de Touros do Campo Pequeno (1892), a tímida emergência do cinema (1896) e das suas primeiras salas (como o Salão Ideal [1904]).

Após a implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, assistiu-se à emergência de ideias futuristas e progressistas, em termos culturais e literários, que abririam as portas ao modernismo português. Em 1915, foram publicados os dois únicos números da emblemática revista literária Orpheu, tendo como colaboradores nomeadamente o poeta modernista Fernando Pessoa e o artista plástico Almada Negreiros. É este o ambiente cultural e literário que vai marcar a vida da cabo-verdiana Fernanda do Vale na sociedade lisboeta da época.

É surpreendente a informação sobre a história de vida de Andresa do Nascimento (aliás, Fernanda do Vale). Tudo indica que nasceu em 1859 numa pequena aldeia agrária perto de Ribeira da Barca, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, filha de catadores de purga. Deixou-se enrolar pelo bem-falante capitão de um barco e fugiu com ele para Dakar, onde seria abandonada. Lá teve de se casar com o alemão Fritz, produtor e bebedor de cerveja, e embarcou com este para Lisboa. Poucos anos depois, o homem morreu.

Sozinha em Lisboa teve de se desenrascar. Primeiro convidaram-lhe para posar como uma das «figuras episódicas» da estátua do abolicionista Marquês de Sá da Bandeira. Como ela tinha um calo no pé, desentendeu-se com o escultor e foi demitida. Depois encontrou emprego como criada de servir de uma senhora da alta sociedade lisboeta, com quem ficou durante dezoito anos. Com a poupança que conseguiu fazer do tempo de criada e uma lista de contactos da elite da vida airada da época, abriu um salão de convívio no Bairro Alto, que foi inaugurado com «muita luxúria». Era ali um dos pontos de encontro noturno de escritores, políticos e turistas, na Lisboa boémia do fim do século XIX e início do século XX.

Fernanda do Vale inspirou uma biografia romanceada sobre a sua viagem da ilha de Santiago para Dakar e depois para Lisboa, onde foi uma das mais conhecidas senhoras de salão dos finais do século XIX e do princípio do século XX, tendo marcado de modo singular a dinâmica da prostituição colonial no coração do império.

Originalmente publicada em 1912, nas Officinas da Ilustração Portuguesa, em Lisboa, tendo como co-autores A. Totta e F. Machado, o livro intitulado A Preta Fernanda procurava simultaneamente apresentar um “retrato da Lisboa elegante, galante e boémia da época”, onde então “janotas e rufias, fidalgos e toureiros, atrizes célebres e raparigas de vida airada, elegantes do Chiado, encontram-se nos bailes, nos teatros, em ceias pantagruélicas e verdadeiras orgias nos mais conhecidos salões ou casas de passe da época. Tudo isso nos é descrito num tom colorido e vivo, ingénuo ou mordaz, pela pena de quem conheceu bem essa vida por dentro e foi uma das suas mais conhecidas e exóticas protagonistas. Fernanda do Vale, já quase retirada, aos 58 anos, foi, ainda assim, em 1917, a única mulher que por ocasião da Conferência-Manifesto Futurista de Almada Negreiros não abandonou a sala quando foi anunciado o Manifesto Futurista da Luxúria.” Estas palavras foram registadas na contracapa desta biografia, comparável à história de Chica da Silva e à noveleta Nga Mutúri. Curiosamente, no caso de Fernanda do Vale, tudo indica que, se não foi a principal autora do texto, pelo menos se trata das suas memórias, embora influenciadas por várias descrições etnográficas exóticas e, inclusivamente, certas descrições de rituais provavelmente de outras culturas africanas ou de populações nativas do continente americano. Certamente que isso indiciará interferências da literatura colonial.

No quadro do colonialismo português, é também muito conhecida a figura lendária de Chica da Silva. Tratava-se de uma mulata, figura real que nasceu e viveu em Diamantina, que procurava inserir-se na sociedade branca de Minas Gerais. Conseguiu-o através da prática do concubinato com o contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, não chegando a formalizar a relação amorosa por causa dos costumes e das leis da época setecentista. Parece que esta estratégia foi adotada por algumas negras e mulatas, sendo corriqueiro que, no leito da morte, os homens brancos alforriassem as concubinas e a descendência escrava.

Também a noveleta Nga Mutúri (isto é, mulher viúva), da autoria de Alfredo Troni, deixa pistas surpreendentes sobre os relacionamentos raciais e sexuais na sociedade colonial. Então, no século XIX, a personagem principal (Sra. Andreza... curioso nome!) é entregue como uma indemnização ao comerciante do mato. Posteriormente, os dois passam a viver em Luanda. Esta relação permite a ascensão e aculturação da protagonista que, após a morte do companheiro, fica numa posição privilegiada, permitindo-lhe suportar as práticas de sociabilidade no ambiente da Luanda da época.

As experiências de preta Fernanda, Chica da Silva e Nga Mutúri ajudam a indagar sobre as relações sociais e o uso da sexualidade no império português, através de relatos históricos, ficcionais e biográficos. Um campo de análise que tem vindo a florescer nos últimos anos.  

 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 828 de 11 de Outubro de 2017. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Expresso das Ilhas,20 out 2017 6:23

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  13 out 2017 15:19

1

pub.

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.