Luís Lima: uma vida sofrida compondo Cabo Verde

PorExpresso das Ilhas,14 nov 2017 6:16

O estádio evolutivo da música cabo-verdiana, que resulta de uma síntese reelaborada de culturas musicais de diferentes latitudes em confronto, ao longo da história das ilhas, deve-se, em grande medida, ao valioso contributo de renomados intérpretes vocais, que tão bem souberam projetar além-fronteiras o nome do país, mas, igualmente, ao inegável envolvimento de compositores de nomeada sem os quais a música não teria, seguramente, atingido o patamar que conhece hoje em dia. Em boa verdade, sem se deixar de lado, todavia, a contribuição inestimável de instrumentistas de reputação internacional, a cultura musical cabo-verdiana, um dos veículos proeminentes de expressão da identidade nacional, tem-se valorizado enormemente, desde sempre, com o concurso abnegado de várias gerações de compositores portadoras de percursos, práticas e estilos diferentes, mas convergindo, em todo o caso, no enriquecimento do património artístico.

Pouco conhecido no meio do público musical cabo-verdiano, Luís Lima é, nesta linha, considerado um dos destacados compositores, cujo percurso se iniciou na primeira metade da década de 70, antes da independência nacional, que se tem afirmado e destacado no panorama nacional com uma linha própria de intervenção, privilegiando os géneros tradicionais da morna e da coladeira e temáticas ligadas ao lirismo e à terra. De nome próprio, Luís Filipe Cardeal de Lima, que reside, há muitos anos, em São Vicente, mais precisamente em Chã de Fanek, na Ribeirinha, nasceu em 05 de Julho de 1952, na localidade de Bcente (Vicente), no Concelho do Paul, Ilha de Santo Antão, e é filho primogénito de Francisco Maurício Lima e de D. Albertina Lima, ambos falecidos.

Movimentando-se de um lado para o outro, entre Paul (Santo Antão), Mindelo (São Vicente) e Povoação (Santo Antão), Luís fez os estudos primários, mas, aos oito anos de idade, precisamente quando frequentava a terceira classe de instrução primária, contraiu uma artrite reumatoide, que o obrigaria a interromper os estudos na sua ilha natal e a viajar para São Vicente para tratamento médico.

Enquanto prosseguia o tratamento em Mindelo com o Dr. José Duarte Fonseca, conceituado cirurgião cabo-verdiano, Luís Lima concluiu a terceira classe na Escola Nova e, posteriormente, regressou à então Vila da Ribeira Grande (Povoação), onde terminou a quarta classe de instrução primária na Escola Roberto Duarte Silva (Escola Central), precisamente aos 14 anos de idade, em casa dos seus tios avós Amélia e Agostinho Rocha, ambos professores, também falecidos. Concluídos os estudos primários, no meio de dores horríveis, o seu médico assistente, na ausência de recursos locais, aconselha-o a deslocar-se a Portugal, em 1966, a fim de, na antiga metrópole colonial, prosseguir o tratamento, já que nem sequer conseguia caminhar.

Em Lisboa, enquanto se submetia a cuidados médicos aprimorados, matriculou-se num colégio, no primeiro ano, mas, em 1967, findo o tratamento, regressou a Cabo Verde, mais precisamente à cidade de Mindelo, onde passou a frequentar a admissão aos liceus num curso de explicações orientado pela professora D. Inácia, mãe do conhecido guitarrista Humbertona. Quando tudo apontava para a recuperação do estado de saúde do Luís, a recaída da doença reumática inflamatória, que o deixava sem forças, prostrado, obriga-o a pôr termo ao curso de explicações já iniciado, no meio de fortes dores, febre e infecções provocadas pela doença crónica e degenerativa.

Na Povoação, onde concluiu os estudos primários, Agostinho Rocha, seu “grande mestre” e mentor, chamava-lhe a atenção para a diversidade do crioulo da Ilha de Santo Antão, entre outras questões de interesse, ao mesmo tempo que o despertava para a vida e lhe moldava o carácter refilão, mas agradável. Desde tenra idade, Luís se interessa particularmente pela literatura e pela música, pois o pai tocava violão e rabeca, cantava em ambientes íntimos de convívio e “falava-me dos grandes tocadores de Paul, de Aníbal Ferro com quem ele aprendeu a tocar rabeca, de Cristiano Ferreira, que morava nas proximidades da Igreja, do Lela Gastão e, ainda, do Martiniano, que executava rabeca e costumava animar bailes de viola e bico”. Rodeado de tocadores de violão e de rabeca, no Paul,“ eu via o meu pai a tocar, o João de Fana a tocar, o Samba a cantar, sentava-me sozinho e começava a sentir aquelas coisas. Tinha um padrinho que me estimulava muito, que era João Nogueira, e, desde criança, comecei a sentir alguma inclinação para a literatura”.

Influenciado pelo padrinho, Luís Lima, ainda cedo, escreve o seu primeiro poema, numa altura em que ainda frequentava a terceira classe de instrução primária, e, curiosamente, dedica-o a D. Afonso Henrique, Rei de Portugal, mas aguardaria o ano de 1975, escassos meses antes da independência nacional, para compor duas obras musicais inéditas: Lua Cheia (coladeira) e Lua na Céu (morna). De facto, a primeira composição da autoria do Luís intitula-se Dor de Nha Dor e foi gravada, sucessivamente, pelo Bana em 1982 e pelo Bau, em 2003.

Inicialmente intitulada Bô ê tud e musicada por Paulino Vieira, o compositor santantonense dedica a morna Dor de Nha Dor à África, à mulher e à criança e, inspirado na realidade africana, viria a produzir outras composições interpretadas magistralmente também pelo Bana, um dos seus intérpretes preferidos, como sejam Canter d´felicidade (1989), África um dia (1997), Sentimento (1999) e Cantos de amor (2002). Autor de cerca de 6 (seis) dezenas de composições gravadas (mornas, coladeiras e marchas), igualmente, pela Cesária Évora, Ildo Lobo, Paulino Vieira, Vaiss, Mirri Lobo, Tito Paris, Nancy Vieira, Maria Alice, Celina Pereira, Zenaida Chantre, Fantcha, Ana Firmino e Paló, o também poeta e declamador, Luís Lima, tem 12 (doze) mornas em carteira, à espera de intérpretes com alguma notoriedade que as divulguem e as valorizem.

Quase sempre, as composições são feitas na madrugada, a partir das duas horas da manhã e em momentos de inspiração, quando falta o sono ao compositor, que se confessa ter sofrido muito, sobretudo depois da morte da sua mãe de quem tem imensas saudades: “O meu sono é desregrado e pouquíssimo, o meu sofrimento é maior que o meu sono”. A despeito do sofrimento que o persegue ditado pelo seu precário estado de saúde e pelas angústias da vida, Luís, tetraplégico e invisual, há muitos anos, é, no entanto, autor de coladeiras muito lindas, sublimes e bem conseguidas, em parceria com grandes nomes da música cabo-verdiana, que espelham o lado irónico da sua vida e a fina capacidade de observação de factos reais do quotidiano de um consagrado compositor e digno filho deste país. 

 

Luís Lima é autor de coladeiras muito lindas, sublimes e bem conseguidas

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 832 de 08 de Novembro de 2017. 

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Autoria:Expresso das Ilhas,14 nov 2017 6:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  10 nov 2017 14:21

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