Homenagem a Lela de Nhô Antôn d’ Ana, Estêve Aldrabão e Frank de Dina, Homens da Praia de Bote
Conformá co bô sorte
Porto Grande hoje ta merme
Até Monte Cara ti ta reclamá
Ta gritá pa céu
Rufux escacaréques
Medjôr larga porta de Figueira
Baía, hoje ta morte na devera
Lembrá na quês gente d’ otrora
Que tónte goitá velbote somá
Tê fca que pestana ta quemá
Nô bai ta escoá pá bandas de Fóstine
Talvez podê parcê um ricurso
Nem q’ fôr uns melozim
E um séma pa enclarecê estóme
E uns falcão pa quentá dente
- Manel de Novas,
“Rufux Escacaréques”
A Rua de Praia que, no dizer de Joaquim Saial, no seu blogue “Praia de Bote” [https://mindelosempre.blogspot.com/], é “o coração mais genuíno da cidade do Mindelo”.
Já foi sítio de catraeiros, de lojas de aprestos marítimos, de vendedeiras de fruta e legumes, de botequins típicos com cheiro a grogue, a peixe frito e a tabaco (cigarro smart, negrita e falcão, tabaco de mascar, de cheirar e mesmo sirê), pescadores e seus botes, plurim d’ pêxe, contrabandos vários, patifes de navalha afiada e também muita gente boa.
A Rua de Praia, a praia da cidade do Mindelo – onde, de facto, ninguém nada ou faz praia – começa na Marina/Pont d’ Água e acaba na Réplica da Torre de Belém ou, baralhando os tempos e as toponímias, a Rua da Praia de Bote começa na ponta do Cais da Alfândega e acaba na Capitania, ou ao contrário, começa na ponta da Capitania e acaba no Cais da Alfândega.
“Praia de Bote sempre me fascinou com suas estórias e suas riolinhas. Passava ali devagarinho, para poder desfrutar do que contavam, imaginando os factos, no espaço e no tempo, como se fosse eu o protagonista porque assim tinha mais piada”. Gostava de ter podido expressar o meu sentir desta forma bonita, mas o escrito é de um outro mnine de Tchã d’ Sumtêr, muito mais velho que eu e que poderia ser meu pai, Valdemar Pereira ou Val de Nhô Hermínio de Telegraph.
Neste fim-de-tarde ou de boquinha-da-noite (meu tempo de escrita) transfiro-me para esse local, para uma das mesas da Pracinha do Pescador, ao lado da estátua de Diogo Afonso, o navegador português descobridor da ilha, para a homenagear e convido-vos a recuar à origem das coisas, à minha mninénsa, melhor, aos anos 50/60.
Vivendo eu na Tchã d’ Sumtêr, portanto, nas imediações da Praça Estrela, do quintalão da Millers & Coris, do Matadouro, do Pelourinho de Peixe e da Praia de Bote, gostava de frequentar essas bandas onde me sentia mais livre para fazer as minhas traquinices.
Guardo desse tempo a memória dos comeres lá de casa os que, com muito pouco dinheiro e muito engenho criativo, a Mãi Liza – que Deus a tenha na sua Glória – fazia do peixe verdadeiros pitéus, principalmente da cavala, mais regular no mercado e mais acessível a qualquer filho-de-pobréza. Ele era caldo-de-peixe, ele era cachupa servida com cavala (cozida ou frita), ele era cavala frita ou de cebolada, comida no pão ou a acompanhar a cachupa refogada de pela-manhã, arroz branco ou pintado de ervilha/congo seco (o meu prato preferido), ele era peixe seco, cozido ou assado na brasa.
Regressado para viver em São Vicente em 2013, depois de 37 anos, a senhoria do meu apartamento, uma amiga desse tempo de diazá, deixou-me guardado em casa um cesto de vime com coisas básicas para quem chega de viagem e à noite.
Dentre esses produtos e para minha admiração, uma embalagem de cavala fumada, produção da indústria local. Levei-a ao nariz e aspirei fundo. Senti que, depois de muito tempo, tinha chegado a casa. As boas-vindas a Soncent não poderiam ser melhores!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 838 de 20 de Dezembro de 2017.