Falucho: Galo já cantâ na baía

PorManuel Brito-Semedo,16 jan 2018 6:19

​Homenagem a Salibânia, Cantadeira de Morna

"A baía abria-se, deserta de vapores, numa ampla linha semicircular. No recôncavo da Pontinha, protegidos pelo pequeno promontório do Fortim, os faluchos cruzavam nervosamente os mastros em todas as direcções, numa briga muda e colectiva de varapaus".

Seus farolins pareciam saltitar dum bordo para outro, de mastro a mastro, como fogos de santelmo” – Manuel Lopes, Galo cantou na baía

Galo Cantou na Baía (1959), Prémio Fernão Mendes Pinto, é uma colectânea que reúne alguns dos melhores contos de Manuel Lopes (São Vicente, 1907 – 2005).

Publicado pela primeira vez na revista Claridade, em Agosto de 1936, com o título “Um galo que cantou na baía…”, é este o conto que abre a colectânea e lhe dá o título e que, na opinião de Russel Hamilton, marca o nascimento da moderna prosa narrativa de Cabo Verde.

Com as suas personagens de vigorosa personalidade, vivendo enredos de forte carga simbólica, relatados numa linguagem simultaneamente densa e subtil, estes contos de Manuel Lopes, seis no total, proporcionam ao leitor uma forte emoção.


Porto Grande tem muito que contar

A reconstrução de uma das muitas viagens de falucho entre Santo Antão e São Vicente feito por Manuel Lopes é um registo que fica como um contributo para a história marítima destas ilhas, ainda por escrever:

“O vento que tinha sido de boa feição ao desamparinho e auxiliara a tripulação na manobra de largar, sem mais problemas que içar panos e puxar ferro, e empurrara o airoso barquinho de nhô Tudinha à bolina mansa até o meio do mar-de-canal, abandonara-o repentinamente confiando-o à corrente marítima, à calmaria podre que agora pesava sobre as ondas entorpecedoras” (pg. 18).

“Cando falucho cambar o ilhéu, e perda d’água virar cara pra sul, pegamos caminho e é só rodear João Ribeiro na endireitadura da Matiota, e estamos na baía” (pg. 19).

“O cúter mal se movia, as velas bambas desmanteladas pela calmaria, os arcos no mastro, a portinhola da escotilha, tamborilando” (pg. 30). Houve uma paragem. […]. O pequeno veleiro quase caminhava de proa como mula recalcitrante. […]. Quando a corrente virou para o sul, arrastou Grinalda em direcção à Ponta do João Ribeiro” (pg. 31).

Numa altura em que os instrumentos da navegação eram os mais elementares: “Os olhos e os ouvidos do patrão Tudinha eram os únicos aparelhos de precisão de que dispunha o Grinalda”.

Igualmente realista é a descrição da forma como a tripulação e os passageiros viajavam e as cargas eram transportadas:

“À excepção do Jom Tudinha, ao temão, e do Castanha, estendido, manhoso, ao alcance dos balaios de encomenda, entre dois fardos de palha, os homens da tripulação dormitavam aqui e ali sobre pilhas de sacos. Os quatro passageiros, empilhavam-se à fresca, no estreito tejadilho da escotilha” (pg. 19);

“[…] no porão, disfarçados entre cachos de banana e sacos de ervilha congo e favona, mais garrafões e latas de dezoito litros de aguardente, sem guia” (pg. 42).


Terra de B.Léza, terra de Salibânia

O conto tem ainda o mérito de recuperar a figura da Salibânia, uma célebre cantadeira, mulher do povo, uma ex-libris de São Vicente dos anos 20 e 30. Segundo Carlos Gonçalves (Kab Verd Band AZ, em preparação), ficou no imaginário da população da cidade do Mindelo devido à sua bela voz e composições e relembra que António Germano Lima (Boavista, Ilha da Morna e do Landú, 2004) apresenta Salibânia como tendo nascido em Fundo das Figueiras e emigrado para São Vicente numa época de muita fome nailha da Boavista (1883-1886).

No conto, Salibânia é uma personagem proprietária de um botequim da zona do porto que funcionava como lugar de reuniões e de ensaios de grupos de músicos onde os tocadores se juntavam num reservado para tocar e beber.

“O grupo, com os seus instrumentos e as músicas novas (quando não eram mornas eram sambas e modinhas brasileiras acabadas de chegar pelos paquetes da América do Sul) atraíam basbaques de todas as classes, desde vadios e mocratas aos funcionários públicos e forasteiros […]. Até doutores iam lá. Entravam anonimamente, misturavam-se com a malta” (pg. 39).

O retrato físico e psicológico da Salibânia, ainda que ficcional, é feito nos seguintes termos: “Rebolando os olhos sensuais, queixando-se com denguice, da vida que ia pela hora da morte, um pouco roliça mas mexida, engraçada e afável, no rosto bochechudo um sorriso gracioso, para muitos prometedor, de alvos dentes, para todos ainda bastante apetitosa […]. Nasceu para servir fregueses, a Salibânia. Ia lá para o cantinho esfregando as mãos no avental […]. Casa é pequena mas de coração grande” (pg. 39).

Lá dentro, Tututa repenicava o violão de olhos levantados para o teto como se as notas do instrumento andassem no ar dançando e Toi, o guarda de alfândega, cantava a sua nova morna pingando as sílabas uma a uma:

Jâ cantâ galo na baía

Sol câ tâ longe de somâ

Mindelo
Mindelo

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro de 2017. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Manuel Brito-Semedo,16 jan 2018 6:19

Editado porrendy santos  em  19 jan 2018 14:40

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.