"A baía abria-se, deserta de vapores, numa ampla linha semicircular. No recôncavo da Pontinha, protegidos pelo pequeno promontório do Fortim, os faluchos cruzavam nervosamente os mastros em todas as direcções, numa briga muda e colectiva de varapaus".
Seus farolins pareciam saltitar dum bordo para outro, de mastro a mastro, como fogos de santelmo” – Manuel Lopes, Galo cantou na baía
Galo Cantou na Baía (1959), Prémio Fernão Mendes Pinto, é uma colectânea que reúne alguns dos melhores contos de Manuel Lopes (São Vicente, 1907 – 2005).
Publicado pela primeira vez na revista Claridade, em Agosto de 1936, com o título “Um galo que cantou na baía…”, é este o conto que abre a colectânea e lhe dá o título e que, na opinião de Russel Hamilton, marca o nascimento da moderna prosa narrativa de Cabo Verde.
Com as suas personagens de vigorosa personalidade, vivendo enredos de forte carga simbólica, relatados numa linguagem simultaneamente densa e subtil, estes contos de Manuel Lopes, seis no total, proporcionam ao leitor uma forte emoção.
Porto Grande tem muito que contar
A reconstrução de uma das muitas viagens de falucho entre Santo Antão e São Vicente feito por Manuel Lopes é um registo que fica como um contributo para a história marítima destas ilhas, ainda por escrever:
“O vento que tinha sido de boa feição ao desamparinho e auxiliara a tripulação na manobra de largar, sem mais problemas que içar panos e puxar ferro, e empurrara o airoso barquinho de nhô Tudinha à bolina mansa até o meio do mar-de-canal, abandonara-o repentinamente confiando-o à corrente marítima, à calmaria podre que agora pesava sobre as ondas entorpecedoras” (pg. 18).
“Cando falucho cambar o ilhéu, e perda d’água virar cara pra sul, pegamos caminho e é só rodear João Ribeiro na endireitadura da Matiota, e estamos na baía” (pg. 19).
“O cúter mal se movia, as velas bambas desmanteladas pela calmaria, os arcos no mastro, a portinhola da escotilha, tamborilando” (pg. 30). Houve uma paragem. […]. O pequeno veleiro quase caminhava de proa como mula recalcitrante. […]. Quando a corrente virou para o sul, arrastou Grinalda em direcção à Ponta do João Ribeiro” (pg. 31).
Numa altura em que os instrumentos da navegação eram os mais elementares: “Os olhos e os ouvidos do patrão Tudinha eram os únicos aparelhos de precisão de que dispunha o Grinalda”.
Igualmente realista é a descrição da forma como a tripulação e os passageiros viajavam e as cargas eram transportadas:
“À excepção do Jom Tudinha, ao temão, e do Castanha, estendido, manhoso, ao alcance dos balaios de encomenda, entre dois fardos de palha, os homens da tripulação dormitavam aqui e ali sobre pilhas de sacos. Os quatro passageiros, empilhavam-se à fresca, no estreito tejadilho da escotilha” (pg. 19);
“[…] no porão, disfarçados entre cachos de banana e sacos de ervilha congo e favona, mais garrafões e latas de dezoito litros de aguardente, sem guia” (pg. 42).
Terra de B.Léza, terra de Salibânia
O conto tem ainda o mérito de recuperar a figura da Salibânia, uma célebre cantadeira, mulher do povo, uma ex-libris de São Vicente dos anos 20 e 30. Segundo Carlos Gonçalves (Kab Verd Band AZ, em preparação), ficou no imaginário da população da cidade do Mindelo devido à sua bela voz e composições e relembra que António Germano Lima (Boavista, Ilha da Morna e do Landú, 2004) apresenta Salibânia como tendo nascido em Fundo das Figueiras e emigrado para São Vicente numa época de muita fome nailha da Boavista (1883-1886).
No conto, Salibânia é uma personagem proprietária de um botequim da zona do porto que funcionava como lugar de reuniões e de ensaios de grupos de músicos onde os tocadores se juntavam num reservado para tocar e beber.
“O grupo, com os seus instrumentos e as músicas novas (quando não eram mornas eram sambas e modinhas brasileiras acabadas de chegar pelos paquetes da América do Sul) atraíam basbaques de todas as classes, desde vadios e mocratas aos funcionários públicos e forasteiros […]. Até doutores iam lá. Entravam anonimamente, misturavam-se com a malta” (pg. 39).
O retrato físico e psicológico da Salibânia, ainda que ficcional, é feito nos seguintes termos: “Rebolando os olhos sensuais, queixando-se com denguice, da vida que ia pela hora da morte, um pouco roliça mas mexida, engraçada e afável, no rosto bochechudo um sorriso gracioso, para muitos prometedor, de alvos dentes, para todos ainda bastante apetitosa […]. Nasceu para servir fregueses, a Salibânia. Ia lá para o cantinho esfregando as mãos no avental […]. Casa é pequena mas de coração grande” (pg. 39).
Lá dentro, Tututa repenicava o violão de olhos levantados para o teto como se as notas do instrumento andassem no ar dançando e Toi, o guarda de alfândega, cantava a sua nova morna pingando as sílabas uma a uma:
Jâ cantâ galo na baía
Sol câ tâ longe de somâ
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro de 2017.