Procura-se recuperar uma nova mundividência sociocultural e um novo humanismo a partir do continente e, neste caso particular, de um país fictício do Universo Cinematográfico Marvel, o que tem vindo a retirar multidões do sofá quente, levando toda a gente ao cinema e tendo entrado na lista dos filmes com maior sucesso de bilheteria por já embolsar mais de um bilhão de dólares.
O consagrado filme Black Panther (Pantera Negra) encontra-se ainda no cinema um pouco por todo o mundo e acaba finalmente de ser estreado em Cabo Verde. Neste filme do ano de 2018, Wakanda ressurge como a civilização mais avançada do mundo, pelo domínio da tecnologia (não da magia) e pelo poder das fontes de energia e recursos minerais (não dos mitos).
O que, à primeira vista, é enquadrada como uma imaginação afro-futurista, que concilia criativamente a ciência e a tecnologia avançada com as tradições culturais milenares, é também reivindicada como uma reinvenção, um resgate e uma restituição da humanidade, da riqueza material e da sabedoria de um passado pré-colonial do povo africano, cujo desenvolvimento histórico seria certamente diferente sem as interferências e consequências de longa duração do processo colonial e escravocrata, bem como das continuidades colonias no período depois das independências nacionais.
Wakanda é apresentado como um país monárquico sem litoral (desse país não se vê o mar). Possui vales superabundantes e montanhas majestáticas, bem como rios exuberantes e selvas luxuriantes que serpenteiam as suas fronteiras terrestres. Situada no centro da insuspeita África Oriental, este é um país rico em recursos naturais e uma superpotência tecnológica, auto-sustentável e isolacionista. Contudo, classificada como país do Terceiro Mundo, Wakanda permanece desconhecida e ignorada pelo resto do mundo e impenetrável. É ali que reside e reina o black panther, um superherói típico dos contos de fadas, melhor, de um novo tipo de conto de fadas que representa a humanização do homem (sic) negro e a efabulação ocidental da África, com a tecnologia futurista e a cultura africana num harmonioso progresso. O sucesso do filme mostra que há mercado para essa narrativa e recriação audiovisual e que isto encontra público não só nas comunidades negras à volta do mundo mas por toda a parte.
Trata-se de um filme marcadamente inovador, começando pelo facto de ser dirigido por um ainda jovem afro-americano (Ryan Kyle Coogler) e passando pela composição do seu elenco maioritariamente por eminentes actores negros, com destaque para Chadwick Boseman como super-herói T’Challa (o tal black panther); Michael B. Jordan como N’Jadaka (Erik “Killmonger” Stevens), rival de T’Challa, com quem disputa o trono; Danai Gurira como Okoye, guerreiralíder das Dora Milaje, exército feminino; Forest Whitaker como Zuri, ritualista e guardião da espiritualidade; Angela Bassett como Ramonda, mãe de T’Challa e rainha-mãe de Wakanda; Daniel Kaluuya como W’Kabi, conselheiro e chefe de segurança de T’Challa; Winston Duke como M’Baku, guerreiro-líder da tribo dos Jabari e rival de T’Challa; Letitia Wright como Shuri, cientista, irmã de T’Challa e princesa de Wakanda; e a insubstituível queniana Lupita Nyong’o como Nakia, ex-namorada de T’Challa. Coisa para dizer que, dentre os actores não negros, se destacam somente dois, ambos enquanto elementos externos à Wakanda: Martin Freeman como Everett Ross, agente da CIA; e Andy Serkis como Klaue, traficante de armas, contrabandista e aliado de Killmonger.
Como se denota pelo enredo, tudo na comunidade gira em torno do seu super-herói, desde quando se proclamou o primeiro guerreiro black panther, que ingeriu uma erva cujo formato assemelha-se a um coração azul com superpoderes irradiados de um meteorito com vibranium que havia caído em Wakanda. É do vibranium que Shuri faz os seus avanços tecnológicos. O vilão Klaue havia roubado vibranium em Wakanda, possivelmente com auxílio de um wakandiano (N’Jobu) que pretenderia partilhar o poder tecnológico do seu povo, acabando por exilar-se nos EUA, onde teve um filho (N’Jadaka) e viria a morrer nas mãos do irmãorei (T’Chaka) que andou a procurar por ele até esse fim do mundo ocidental. Além da resistência contra a intervenção externa e pelo isolacionismo, é também importante considerar a simbologia da luta fratricida entre irmãos de sangue. Mais tarde, a geração mais jovem, herdeira da rivalidade ancestral, vem desencadear uma nova guerra de disputa pelo trono para conduzir os destinos de Wakanda. É por esta via que os primos T’Challa, filho de T’Chaka, e o também descendente N’Jadaka (Killmonger), filho de N’Jobu e abandonado sozinho nos EUA, assumem protagonismo no território de Wakanda. Uma guerra onde se rivalizam duas concepções do mundo: o isolacionismo pela manutenção da paz e da estabilidade de Wakanda versus a abertura ao mundo através da partilha do poder do vibranium em prol da união mundial e do apoio aos povos oprimidos de ascendência africana.
Num mundo onde o negro ocupa lugar marginal e a diáspora negra ainda vem lutando por um lugar ao sol, este filme tem sido aclamado pela crítica, mas também ganhou apreciadores um pouco por todo o mundo, de modo particular nas comunidades negras, por causa do apelo à solidariedade global entre irmãos de raça negra, da partilha do poder da tecnologia avançada com o resto do mundo e da aposta num humanitarismo contra o racismo.
Todavia, essa versão utópica tem encoberto outras desigualdades, como por exemplo o papel muito secundário reservado às mulheres wakandianas como auxiliares, coadjuvantes e promotoras do novo rei, desde a rainha-mãe Ramonda, a guerrilheira Okoye, a espiã Nakia e a cientista Shuri. Sim, são mulheres com protagonismo, mas ocupando o segundo plano num mundo ainda que seja de preponderância negra. Por outras palavras, não basta a libertação da opressão racial; várias outras discriminações precisam ser combatidas. E não justifica, por razão de natureza alguma, que a eles (seniores e juniores) sejam reservados lugares ao sol, ou a visão do pôr-do-sol de Wakanda, e a elas tão-somente a condição de auto-satisfação com a felicidade e realização deles, o que indicia que mesmo a visão futurista afrocêntrica jovial diaspórica celebratória peca pela miopia do sexismo arreigado. É, afinal, apenas um filme?
Apesar da aclamação popular e da crítica especializada, também se levantam vozes contestando a apropriação acrítica de uma imagem idílica de África (tanto na sua reinvenção pré-colonial como na sua interpretação futurística) ou da comercialização dessa imagem no mundo da indústria cinematográfica. Acabo de ler um texto bastante sugestivo do historiador camaronês Achille Mbembe (“Black Panther ou le retournement du signe africain”) que questiona essa aparição da África na consciência tecno-cinematográfica do nosso tempo: Pourquoi maintenant et pourquoi sous cette forme? Qu’est-ce qui explique que des foules en Afrique, aux États-Unis, au Brésil et ailleurs soient prises dans un tel engouement pour ce qui, après tout, n’est qu’un film ?
É, afinal, apenas um filme?
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 850 de 14 de Março de 2018.