1. O Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que complementa a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, vulgarmente conhecida como Convenção de Palermo, define e caracteriza o fenómeno como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade, ou ainda de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento, exercer o controlo sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”. Mesmo que Cabo Verde não tenha ainda aderido à Convenção, a revisão legislativa de 2015 terá refletido esse espírito, criminalizando a maioria de tais ilícitos.
2. O desaparecimento de seres humanos, sobretudo quando envolve crianças, é sempre muito grave sob qualquer perspectiva. O impacto mediático que mobiliza, a enorme inquietação social que gera, o medo que dissemina entre a população e a consequente perda de confiança nas suas autoridades, a tentação de politizar para recolher dividendos, a proliferação de boatos e culpabilizações infundadas, enfim, tende a criar um cocktail de factores que pode dar em tudo, excepto contribuir para manter o foco no essencial que é a condução de uma investigação incisiva, abrangente e virada para resultados.
3. O caso de Cabo Verde pode configurar qualquer das perspetivas mais macabras, como infelizmente acontece em muitas outras partes do Mundo. Podemos estar perante actos de pedofilia ou outras práticas de predação sexual. Pode estar emergindo formas despudoradas de psicopatias que a sociedade ignorou ao longo dos tempos. Podemos também estar perante o tráfico de seres humanos operado pelo crime organizado. Ou, pior ainda, o rapto de pessoas para o lucrativo mercado de tráfico de órgãos. Em suma, qualquer dos segmentos enumerados no Protocolo, para fins de exploração sem escrúpulos e geração de riquezas ilícitas.
4. Não importa o cenário, esses crimes são sempre de muito complexa e difícil investigação em qualquer parte do Mundo. Se precisarmos de exemplos mediáticos, basta recordar o “Caso Maddie”, a menina inglesa desaparecida no Algarve ou, muito recentemente, a adolescente portuguesa desaparecida na França. Podemos referir também aos casos extremos de milhares de desaparecidos na América Latina e outros tantos nos Estados Unidos, na Europa e em muitas outras paragens, onde nem mesmo ficam registos estatísticos.
5. Não existe uma bola de cristal para a investigação criminal. Nem mesmo para os Serviços de Inteligência. Os profissionais da área sabem o quão difícil é, por vezes, descobrir uma pista plausível, identificar uma prova, montar um raciocínio lógico, equacionar um padrão, dar substância à uma tese, criar uma linha de tempo e conduzir um processo ao bom porto, ou seja, ao mapeamento, identificação e tradução em justiça de eventuais perpetradores, tentando salvar ao mesmo tempo vidas humanas. Esta dificuldade é ainda maior no contexto actual, em que qualquer investigação parte de uma mão-cheia de quase nada: não há corpos, não há ainda imagens de vídeo vigilância, não há testemunhos consistentes, ninguém viu coisa nenhuma e, para complicar, abunda todo o tipo de perigosas e incendiárias especulações. E, contudo, há esses casos todos por esclarecer. Há famílias arrastando a pesada agonia dos dias que passam sem trazer luz nenhuma sobre como, onde, com quem estarão os seus entes desaparecidos. Há uma sociedade inquieta e assustada descobrindo, de espanto, a realidade brutal de coisas que, afinal, podem acontecer também aqui. Na soleira das nossas portas. Nas nossas ruas e becos. Com os nossos meninos brincando, a caminho da escola ou fazendo recados de família.
6. A situação é complexa e há que abordá-la com frieza e realismo. As autoridades devem resistir à tentação de repetir erros de um passado ainda recente, porque a segurança de um país não é compatível com decisões simplistas de fazer “rolar cabeças” em momentos críticos, apenas para satisfazer apetites mediáticos ou segmentos de pressão. No fundo, as únicas iniciativas fáceis em dramas como este, são as de apontar o dedo e insinuar incompetências, sobretudo quando não entendemos a complexidade de determinadas funções e cargos. Alguns cargos implicam, infelizmente, não partilhar em demasia o trabalho em curso, o que não significa de forma nenhuma, que não se esteja cumprindo com a função. Independentemente das nossas críticas – e elas existem -, este é o momento de cerrarmos fileiras junto das nossas instituições. De apoiar e encorajar as nossas Polícias, Estruturas de Justiça, Forças e Serviços de Segurança a fazerem mais, muito mais. Porque do desfecho dos casos sob investigação, depende o conteúdo da mensagem que estaremos passando: vai se permitir que esse tipo de crimes hediondos se instale e se enraíze no nosso território, ou se dá um sinal contundente de que Cabo Verde é, e deve continuar a ser um espaço hostil à tais práticas, devendo a nossa justiça ser implacável contra os perpetradores, sejam eles quem forem.
7. Mas aqui também não cabe comodismo nenhum. Impõe-se sobretudo evitar os lugares comuns de comparação e estatísticas. Basta fecharmos os olhos e imaginarmos, por um instante que seja, que as pessoas desaparecidas fossem filhos nossos. Netinhos nossos. Irmãos nossos, primos, enfim. Basta vestirmos, por um segundo, a pele das famílias obrigadas a reprimir como podem, um turbilhão angustiante de perguntas sem resposta. Nós não estamos perante “processos normais ou comuns” que podem, tranquilamente, transitar de um ano para outro e desse para o seguinte, em “diligências pertinentes com vista à descoberta da verdade material”. Não podem, porque não se trata de processos como os outros. Se se vier a confirmar que os desaparecimentos estão ligados à acção de redes organizadas para que fins for, então estaremos enfrentando um dos géneros da criminalidade mais brutal e hedionda do nosso tempo, em que as estatísticas são inquietantes. Por norma, se os perpetradores não forem detidos nas primeiras horas ou dias, dificilmente se consegue recuperar as vítimas com vida. Aqui, os minutos e os dias contam. E pesam muito.
8. A decisão do Ministério Público em criar uma Comissão Intersectorial vem em linha com este raciocínio, pecando apenas por tardia. E dela, a nação, a sociedade civil e o cidadão comum esperam muito. Pelo nível, experiência profissional e conhecimentos dos integrantes, certamente que não precisarão de sugestões ou ideias de fora. Mas façam tudo o que tem de ser feito internamente, e não tenham pejo nenhum em pedir auxílio externo e cooperar com instituições congéneres da CEDEAO, de Angola, da União Europeia, dos Estados Unidos, do Brasil e da China, entre outros, cruzando todos os dados disponíveis nos vários sectores, tanto da investigação criminal, como das Forças e Serviços de Segurança em matéria de prevenção, etc.
Como cidadão comum, a Comissão tem o meu apoio e encorajamento para fazer tudo o que se impõe, para o bem das vítimas e suas famílias, para a tranquilização da sociedade e, sobretudo, para a mensagem que importa mandar ao submundo do crime.
Porque é disso é que somos feitos. De perseverança, resiliência e muita teimosia. Por isso é que somos cabo-verdianos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 850 de 14 de Março de 2018.