É um género tão apreciado por estas paragens (entenda-se Cabo Verde), e mais regionalizadamente, em São Vicente - Mindelo. E eu, enquanto amante e dando uns passitos suavecitos na escrita de crónicas, evoco e tomo como referência um punhado de sapientes cultores/cronistas (nacionais): Fátima Bettencourt, Dina Salústio, Vadinho Velhinho, Daniel Medina, Manuel Brito Semedo, João Branco, João Furtado… e the last, but not the least - o “nosso” Rocca Vera-Cruz.
Qual são-vicentino, de gema (pois claro), nunca leu uma das crónicas malaguetadamente humorísiticas de Rocca? Sim! As tais partilhadas nos perfis, messengers e vibers da vida. “Oh boy, já bo alê kel texto? Mi jal estrame!” – dirá qualquer virtual leitor dos textos-bomba desse “menine de Soncent, do carnaval e um fervoroso benfiquista”!
Crónicas do Mindelo é um espetáculo que marca o 25º aniversário do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo / Instituto Camões (GTCCPM/IC). Marcado por um dream team que mescla atores de diversas gerações/momentos do teatro em São Vicente (devo assinalar – sem desprimor ao restante elenco - os regressos aos palcos de Rank Gonçalves, Nuno Delgado, Ducha Faria, Romilda Silva, Edson Gomes e Gabriela Graça). Um aplauso a todos os atores pelo trabalho!
Tendo como fio da encenação o teatro-comédia-de-situações, temos duas horas de imensa gargalhada, de nos vermos ao espelho, de nos deitarmos num divã ou, quiçá, nos sentarmos na Praça Nova e vermos passar o Txupirix ou o Ney, um Balotelli nas mãos de tantos nomes (Sandras, Patrícias, Suzis… deste nosso “Mindel”)!
E vivenciarmos uma carta mandigamente escrito-dita ao – mister presidente – Donald Trump! Ninados pela música (de Yannick Almeida e Eliana Rosa) – o tal acompanhamento musical – um traço recorrente das encenações de João Branco.
Um “big up” à cenografia do Fernando Morais – ou simplesmente Nóia – do coreto in Praça Nova – pulsantes ex-libris da nossa ilha!
E as perguntas que não se calam após o espetáculo (propostas incessantemente pela dupla Rocca-Vera-Cruz-Branco):
O que nos faz ser mindelenses?
Será o fidje de pastel, o hora de kriol, o dá kel café, fazê grogue na praça, o trá boca de morte, o rusgá um festa, tem kel “traboi” remuneród – nha namoród ta na Itália, o dá expediente p trá um dia ou pa pagá propina, a Laginha, Ribeira Bote, Fonte Francês…?
Há tanta ordinarice/luxúria/ostentação em Mindelo ou Rocca-Vera-Cruz-Branco exageram? Convido-vos, então, a ler as crónicas: “Cidade do Pecado” de João Branco e “Cartão Postal: o copo” de Valódia Monteiro!
Numa perigosa fronteira entre o fácil risível e o ordinário chocante (para um púdico espectador) - a peça é um retrato cru de Mindelo! Ai, ai de nós se não nos confrontarmos com as nossas manias, segredos, hipocrisia, veneno, riola e tma bonê (ou “versa-vice”)… e não nos rirmos de nós mesmos!
Há tanta coisa por dizer sobre Mindelo – que não se esgota num espetáculo! Pois, Mindelo é também Biús, Cesária Évora, Bana, Jotamont, a “noite de Mindelo”, Vlu e Constantino, os mandingas de Rbera Bote, BAC na rua, Baloitimes, Baía… – uma ilha que se construiu à volta de uma cidade e uma cidade que projeta a ilha para o mundo. Mindelo é festa, é morte, é casamento, é traição, é um “largame da mon, bo txame em paz, bo ma ess paleio já ta mut dmas”! É um ir e voltar – pa “matá sodade”!
E se ousarmos fechar os olhos para a realidade, temos sentinelo-cronistas da lírica urbana (Batchart, Kiddye Bonz, Mark Delman…). E relembro as palavras de MC Seiva: “li tud enkuant ta passa li, até água de txuva te muntiá li / falsidade/mentira também ta morá li” (Soncent-Mindelo).
Viva Mindelo! El ê nos tude – um embigo de dupla face (sabura e tragédia) – humilde urbe-mundo – deste imenso e partilhadamente-nosso Cabo Verde!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 852 de 28 de Março de 2018.