Retratos do Quotidiano: Hermano Almeida: o percurso de uma vida marcada pela música (parte II)

PorCésar Monteiro,22 mai 2018 7:24

A história de vida de Hermano Almeida é particularmente assinalada pela forte presença da música que, desde tenra idade, encontrou em casa dos seus ascendentes, na então Vila da Ribeira Brava, Sede do Concelho da ilha, onde, na normalidade, decorreram a infância e a adolescência próprias do meio ambiente sanicolaense de então. Em casa da avó Maria Fina e sob o seu manto abençoado, Hermano cresce com o “bichinho” da música e tira proveito da presença do tio materno, José Guilherme Almeida, conhecido por José Finado, considerado “bom tocador de violão para o meio”. Ainda cedo, não teria ele completado os 7 anos, chegam aos ouvidos do Hermano Marciano as primeiras melodias e acordes de conteúdo religioso e popular, cuja convergência teria despertado nele o gosto e a verdadeira paixão pela música, numa altura em que se tornava raro aparecer, em São Nicolau, um gramofone ou gira-discos.

Assim, nesse processo de iniciação musical informal, Hermano ouvia, aos Domingos, os sons do órgão da Igreja Matriz e, nos dias úteis da semana, preenchia o tempo livre, “escutando muito o Santos, pai do Paulino Vieira, empregado da loja de Cícero do Rosário, mais conhecido, por Nhô Chege, pai do Leça, que aproveitava todos os momentos sem freguês para pegar no violão, que dedilhava bem, ou no violino, que executava maravilhosamente bem e interpretava modinhas da época (…)”. Norteado pelo desejo na aprendizagem musical, num “meio pacato e monótono onde praticamente nada acontecia”, Hermano escutava, também, Armando Fonseca, na padaria do pai, de resto “muito bom tocador de violão”, e, com os dois patrícios,“procurei captar aqueles acordes e choradinha (…)”, nesse tocar ambulante onde, de resto, bebi muito”.

Aos 10 anos, já com violão em casa, Hermano sente-se irresistivelmente atraído por esse fantástico instrumento de cordas e querendo “aprender umas ‘posições’”, teria que, para tanto, remover um obstáculo interno, pois a avó materna com quem se criou não lhe permitia, por precaução, que, de forma alguma, “pusesse os dedos no violão com o receio de poder vir a seguir as pisadas do tio José Finado” e, por isso, dizia ao neto, sempre: “Não ponhas bebida na boca, toma tua parte em bolacha e açúcar amarelo (farofa)”. De formação religiosa, a avó era “muito católica e devota fervorosa do Sagrado Coração de Jesus”e, por isso mesmo, não restava ao Hermano outra alternativa que não fosse a de seguir as pisadas dos seus ascendentes, com tamanhas entrega e devoção. Assim, desde cedo, influenciado pela avó Maria de Fina, frequentava a Igreja Católica, cuja instituição, para lá do seu “papel preponderante” no processo de aprendizagem formal da música, teve uma “vertente formativa, moral e cívica” de interesse relevante. A despeito da proibição da avó materna na utilização do violão, Hermano” refugia-se nos padres Salesianos” que, na altura, tinham chegado à ilha, e integra-se no grupo coral do qual também faziam parte Guilherme, Osvaldo Azevedo, Talotche, António Benrós e outros colegas daquela geração com o intuito de “aprender música e poder tocar o órgão”. Navegando à volta dos cantos litúrgicos em latim, até 4 vozes, e conseguida, com sucesso, a primeira incursão na música pela via do grupo coral, Hermano é selecionado para iniciar o solfejo e, finda a sua aprendizagem, igualmente, promovido a organista, mercê do “empenhamento e ensinamentos dos professores Jack Bibi, Irmão Carlos Marques e Padre Miguel Rodrigues.

Na linha dos teclados, apaixona-se pelo acordeão e, aproveitando as férias na ilha do simpático e aberto acordeonista Lulu Marques, apropria-se da “técnica dos botões para acompanhamento com a mão esquerda”, que, depois, pratica na Igreja do Nazareno, devidamente autorizado pelo pastor José Caldeira Marques. Numa situação insólita, Hermano fica como organista da Igreja Católica e, concomitantemente, estagiário no acordeão dos Nazarenos. Sentindo-se com a autoestima lá no alto, começa, em simultâneo, aos 17 anos, a aprender algumas notas no violão e a tomar gosto pelo contagiante instrumento de cordas, que adquire, depois, em S. Vicente, pelo preço de 70$00, através de Tazinho, então mestre do navio Santa Cruz e, igualmente, mestre do violão, numa das suas habituais escalas em S. Nicolau.

Na posse de violão, passa o Hermano a dedicar-se “mais ao violão e acordeão” e, pouco a pouco, aprofundando os conhecimentos no manejo dos dois instrumentos musicais, que se consolidam com as serenatas tão frequentes, sob o olhar sempre atento da adorada avó Maria de Fina. Familiarizado e perfeitamente à vontade com o violão e acordeão, através de prática sistemática, vai a São Vicente em Fevereiro de 1959 para estudo e exames do curso geral dos liceus e ali é convidado pelo professor Augusto Pirico e o primo Waldemar Lopes da Silva, ambos falecidos e, também, grandes tocadores de violão, para “tomar parte no sarau cultural que, anualmente, se realizava no Liceu Gil Eanes e que ainda integrava o Humbertona, Mário Fruzoni, Jorge Alfama, Faria e Zinha Aparecida”, entre outros nomes. Em 1960, Hermano conhece, na Praia, Luís Rendall, de passagem pela cidade, em casa de Torquato polícia, que morava na descida do Lavadouro, acompanha-o ao violão, secundado por Taninho sapateiro, e aprende, com o mestre das cordas de aço, a executar os seus lindíssimos solos.

Já em São Vicente, entre 1966 e 1968, volta a encontrar-se com o mestre Rendall,numa tocatina em casa de Vitorino Medina, que morava no Alto Mira-Mar, e, através do exímio tocador de violão, que “tirava solos e acordes preciosos”, Hermano Marciano conhece a melódica, adquire-a imediatamente e passa a executá-la, sem grande esforço, depois de se familiarizar com o instrumento. No ano seguinte, em 1969, é transferido para a ilha do Sal e, ali, o seu tempo livre é preenchido em tocatinas e convívios com amigos e companheiros musicais como Taninho Évora, outro mestre do violão e genro de Luís Rendall, Carlos Germano, Maximiano, Manuel de Eugénia, Celso Estrela, entre outros bons tocadores de violão. Anos mais tarde, precisamente em 1973, quando regressa definitivamente à Praia, Hermano tem o privilégio de gravar com Luís Rendall acompanhado, ainda, por Henrique Oliveira (Djick) e Jaime do Rosário.

Todavia, a despeito da sua vocação musical, Hermano, que domina a técnica de acompanhamento de violão dos bordões, não integra, “a sério”, nenhum conjunto musical, porquanto as suas ocupações profissionais não o permitiam. No passado, é certo, fez parte do denominado Grupo Fogo ao qual também pertenciam Betu, Nhelas Spencer, Djick, Braz Andrade, Nhonhô Hopffer e Elisabeth, esta última de origem canadiana e antiga funcionária do PNUD, que cantava mornas muito bem. Privilegiando outro ângulo - o da gravação -, e no intuito de “querer preservar mornas antigas da Brava, por empenhamento do João Martins e esposa”, Hermano Almeida toma parte com Luizinha Medina na gravação de alguns temas de compositores antigos da ilha de Eugénio Tavares, à qual se associaram ainda, como acompanhantes, Djick e Renato Cardoso, com a assistência técnica de Vuca Pinheiro e cujo produto final em CD “circula mais na América, para fins sociais”.

Aposentado, desde Junho de 2001, conhecedor da teoria musical, cultor, valorizador e preservador da música tradicional, na peugada dos grandes instrumentistas cabo-verdianos, tem vindo a dedicar-se, da há algum tempo a esta parte, ao piano, e, pontualmente, “faço alguns treinos no violão, embora curtos, para exercitar os dedos”. Igualmente, apreciador e praticante de canções estrangeiras românticas, com destaque para a bossa nova, e ricos temas de Tom Jobim, do ponto de vista melódico e harmónico, como Chega de Saudade, Dindi, Desafinado, Samba do avião, Luiza, etc., Hermano Almeida, também solista de violão de cordas de nylon, de preferência, assume-se, ao mesmo tempo, como respeitador das modernas criações musicais cabo-verdianas, em sintonia com a diversidade cultural e a mestiçagem típica do arquipélago.

image

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:César Monteiro,22 mai 2018 7:24

Editado porAntónio Monteiro  em  24 mai 2018 9:22

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.