A maldição que perdura

PorEurídice Monteiro,10 jul 2018 6:26

Começo com um necessário alerta à navegação: o título deste artigo veio-me à mente na tarde da eliminação da última equipa africana da copa do mundo de futebol, mas não se trata de um artigo ressabiado devido à inconveniente ou até maledicente prestação do continente. Mo Salah ficou-me na memória! Em todo o caso, uma analogia entre o político e o que se passa concretamente no rectângulo futebolístico não é de todo descartável.

Parece um pouco mais reconfortante acreditar que foi a máfia da FIFA que tramou as equipas do continente africano, sem assumir, com a abertura de espírito, que a Nigéria falhou reiteradamente no último jogo quando teve as oportunidades de marcar golos e o Senegal, depois da primeira vitória, perdeu progressivamente o ânimo, empatando no segundo jogo, e depois manteve com uma insustentável estratégia defensiva no terceiro e último jogo da fase de grupos, o que ditou a sua queda final diante de uma Colômbia mais táctica e pragmática.
Não adianta nem insinuar, como descarga de consciência, que também a própria campeã do mundo, Alemanha, foi eliminada na fase de grupos. Não vale a pena aliviar a dor com a desgraça dos outros. Deixemos a Alemanha acreditar piamente que ficaram pelo caminho não por falta de eficácia, mas simplesmente por causa da maldição do campeão do mundo ou da maldição do grupo F, a que pertencia e que, segundo consta, nunca ganhou a copa.

Ou devido a uma suposta praga rogada, em 1941, por Joseph Stalin contra Adolf Hitler, cuspindo três vezes no chão e dizendo que jamais a Alemanha ganharia em solo russo. Seja como for!
Ainda que não seja por falta de táctica, mas tão-somente por pouca sorte, a verdade é que já só resta a França, a ironicamente mais africana das equipas que se qualificaram para a fase seguinte deste mundial de futebol. Coisa para perguntar: Será que, tal como o Lionel Messi que só joga à valer com a camisola da Barcelona, a nossa África continua ainda cúmplice dos grandes impérios e pouco eficiente em causa própria? Será mais uma taça que os tais sete a oito filhos das mães negras (razão do referido subdesenvolvimento africano, segundo Emmanuel Macron) vão sacar para adensar o já gordo saldo da república francesa? Enfim, mas, vamos ao que interessa por agora...
Eloisa e outros silêncios
Na mesma semana em que assistia, através dos jornais e das redes sociais crioulas, o desenrolar do caso da jovem com uma gravidez ectópica (ou seja, fora do útero) evacuada da ilha da Boa Vista, num barco de carga, à noite, para a vizinha ilha do Sal, tomei conhecimento dos surpreendentes resultados parciais acerca de uma investigação em curso para a invenção da pílula masculina, coordenado pelo Ministério da Saúde

norte-americano e envolvendo países como Suécia, Itália, Chile e Quénia (espero que os latinos e os africanos não sejam usados como cobaias nos testes clínicos). Isto significa que, para além do preservativo, da vasectomia e do coito interrompido, mais cedo do que tarde pode-se contar com um contraceptivo hormonal masculino, uma espécie de gel para reduzir e abrandar os milhões de espermatozóides abaixo do limiar da fertilidade. Falta estudar o nível de confiança das mulheres perante uma hipotética afirmação dos homens: “amor, eu uso a pílula.” Seria, certamente, um ganho extraordinário a diversificação dos métodos contraceptivos masculinos e a possibilidade de uma maior responsabilização dos homens na contracepção.
Os dois casos referidos no parágrafo anterior são exemplos quase extremos de diferentes ritmos de desenvolvimento em termos de cuidados de saúde e atendimento social no domínio da saúde sexual e reprodutiva. Não adianta apontar o dedo a um ou a outro partido político em Cabo Verde. O problema é do próprio país no seu todo, decorrido todos esses anos de independência, democracia e desenvolvimento mitigado. Será sempre pouco ou quiçá nada relevante desvendar se a verdadeira razão da morte de Eloisa Correia teria sido o agravamento, com a gravidez, dos problemas cardíacos de que padecia ou então, em sentido inverso, o impacto desse tipo de gravidez nas

complicações cardíacas de base.
Terá toda relevância saber se houve ou não negligência na prestação de socorro à vítima por parte da transportadora aérea e dos serviços de saúde; ou se a própria vítima (jovem do interior de Santiago, migrante e auxiliar de limpeza na Boa Vista) procurou ou não assistência em tempo útil. Mas, em última instância, o que está no centro das atenções é essa fraca capacidade do país no seu todo (e não só uma ou outra ilha em particular) em atender a situações emergenciais dessa e de natureza semelhante. Trata-se tanto da dificuldade de evacuação em geral, como está em causa um problema específico e com impacto na reprodução desta nação.
Pondo no seu devido lugar os aproveitamentos políticos e as manobras que a ocasião proporciona, denota-se evidentemente que os desafios que a maioria das mulheres caboverdianas enfrenta – principalmente as jovens – estão ausentes nos reverberados discursos políticos. Tudo indica que está-se perante um caso em que uma mulher jovem grávida morreu em busca de tratamento médico entre duas das ilhas mais turísticas do país, provavelmente por não ter sido evacuada a tempo de uma ilha para a outra ou por ter-lhe sido negada assistência em devida hora. Fica aqui um vazio e um silêncio colossal que as razões e justificações de nenhuma das alas políticas conseguem preencher.

Vejo muito boa gente a tentar desviar do facto de se tratar de uma jovem grávida para focar no problema das evacuações. Ora bem, ainda que seja assim, isto me faz lembrar de uma conversa que, certa vez, tive com um amigo meu acerca do curioso facto de que os Chefes de Estados e de Governos em África morrerem, em larga maioria, nos hospitais de países europeus ou regressarem moribundos na sequência de tentativas infrutíferas de tratamento médico na Europa. Sendo que, em muitos casos, recorrem aos próprios recursos do Estado para a prestação de socorros nos casos pessoais ou aos seus familiares mais próximos. Estes factos implicitamente trazem uma perturbação de raiz e causam um malestar público profundo.
Nos dias de hoje, já não é de se aceitar, nem um pouco ou de leve ânimo, as esfarrapadas desculpas da falta de recursos e da pobreza material. A tónica deve ser direccionada para a política de investimento público que ainda não prioriza o que deve ser realmente prioritário. A incessante falta de investimento adequado ao desenvolvimento do sistema público de saúde e à prestação de cuidados básicos e especializados continua ainda a motivar as sucessivas ondas de evacuação para o exterior. Os nossos indicadores de saúde não são estáveis. Basta uma epidemia de Cólera, Dengue, Ébora ou Zika circular por aí para que todos esbarremos no óbvio: o nosso sistema de saúde é estruturalmente frágil.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.

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Autoria:Eurídice Monteiro,10 jul 2018 6:26

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  10 jul 2018 6:26

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