O mito e o monumento

PorDulce Lush,21 jul 2018 13:17

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​A escala da Lusofonia no Sal, nestes dois últimos dias, pode simbolizar uma nova largada para o desenvolvimento cultural do país, rumo a uma Cabo-verdianidade Pensada na Língua Portuguesa. Ou melhor, conviria que assim fosse, pois a questão do português em Cabo Verde é um pendente que dura desde 1975, sem que nenhum governo cabo-verdiano tenha dado uma resposta cabal ao que se tornou um problema nacional.

Enquanto isso, na ausência de decisões políticas e num contexto de profundas transformações sociais e culturais, tende-se a comparar a situação sociolinguística atual com a de um passado, mais ou menos recente, em que os cabo-verdianos conheciam e usavam a língua portuguesa com mestria. A meu ver, este modo de encarar o problema baseia-se mais no mito de um modelo cabo-verdiano de excelência em português do que na prática social da língua. Sabemos que as representações positivas associadas ao «bem falar» português sempre foram determinadas pela produção de uma minoria, essencialmente, urbana e, necessariamente, escolarizada. Fenómenos como o desconhecimento da língua portuguesa pela população analfabeta, assim como os casos de iliteracia e respetivas consequências, eram (são?), pura e simplesmente, escamoteados.

Hoje, o desenvolvimento cultural, a escolarização generalizada e prolongada, mas, principalmente, a liberalização da expressão e dos meios de comunicação social são fatores que dão visibilidade ao uso do português por um número crescente de pessoas, através de meios de comunicação cada vez mais diversificados. E é assim que, a par da competência linguística, por exemplo, dos nossos laureados, seja com o prémio Camões, seja com distinções em concursos escolares internacionais de língua portuguesa ou de matemática, temos falantes do português, nas diferentes esferas da vida social do país, que revelam graves insuficiências de expressão, quer escrita, quer oral. Penso que qualquer abordagem realista do problema deverá começar por diferenciar essas situações e fazer delas a leitura que se impõe.

Uma outra tendência, que deveria merecer a devida atenção, é a que consiste em definir a cabo-verdianidade através da hiperbolização da função simbólica da língua cabo-verdiana. Subjacente a essa definição, reside, de facto, a ideia da supremacia da componente crioula e oral da nossa cultura. Ora, por muito digno que possa ser o monumento erigido à língua cabo-verdiana, a «mãe de todos nós», colocar esta sobre um pedestal tem o efeito de condicionar a mentalidade coletiva a considerar a tradição ágrafa como hegemónica. Limita-se, desse modo, a opção pelo português, cuja perda de funcionalidade ocorre em quase todos os setores nacionais.

Mas a iniquidade de tal perspetiva faz-se sentir, em primeiro lugar, na Escola cabo-verdiana, a qual deixa de poder garantir a transmissão do património nacional construído em português. Também fica comprometido o caráter convencional da linguagem escrita pois cada um passa a decidir que língua utilizar para interagir com os outros, incluindo com o Estado. Assim, tanto o aluno como o cidadão exprimem-se da forma que acharem mais conveniente, sem terem que respeitar a norma, tal como acontece com a escrita da língua cabo-verdiana, cujas regras ortográficas ainda não estão, formalmente, fixadas.

A complexidade de toda essa situação reflete-se no seguinte dilema, a que os decisores estão confrontados : ou conseguem, através de uma ação política eficaz, contrariar a tendência para o descalabro do português em Cabo Verde, sendo certo, no entanto, que a língua não será revitalizada por decreto; ou optam por acompanhar o movimento geral que limita o uso do português a raras circunstâncias da vida social, sabendo, porém, que é preciso ter a coragem de assumir tal escolha e de a anunciar sem qualquer dissimulação intelectual.

As dificuldades são, de facto, imensas. Apesar de tudo, a esperança é permitida pois o Sal é, certamente, o lugar mais inspirador do vasto mundo para se iniciar uma viagem pela cabo-verdianidade dentro. Esperemos, pois.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 868 de 18 de Julho de 2018.

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Autoria:Dulce Lush,21 jul 2018 13:17

Editado porChissana Magalhães  em  27 jul 2018 14:03

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