Campeões mundiais globais, racismo e confusões identitárias

PorJosé Almada Dias,31 jul 2018 6:17

​Caiu o pano sobre o Mundial de Futebol da Rússia, com a vitória da França sobre a Croácia.

A partir do momento em que a equipa da França se posicionou como uma das favoritas, começaram a chover nas redes sociais fotos, crónicas, artigos de opinião, entrevistas, vídeos sobre o facto de a mesma ser constituída, maioritariamente, por filhos de emigrantes, sobretudo, africanos.

Esta corrente atingiu o êxtase com a vitória da França, tornando esses pretensos “africanos” campeões do mundo. Não faltaram frases jocosas a dizer que não foi a França que ganhou o Mundial, ditas e repetidas à exaustão até por figuras públicas. A coisa terá chegado a um ponto tal que o próprio Presidente francês, Emanuel Macron, veio a público esclarecer que os jogadores da equipa francesa eram franceses, independentemente da cor da sua pele ou do local onde nasceram, ou da origem dos seus ascendentes.

Vi até um vídeo do Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, a exultar com a vitória de África, acusando a França de ter escravizado a África durante 500 anos, entre outras diatribes. O homem esqueceu-se foi de dizer que os europeus não praticaram a escravatura em África (aí foi praticada por africanos e árabes), mas sim no Novo Mundo, onde os ascendentes europeus de Maduro escravizaram homens e mulheres negros e índios, e onde, particularmente em países como o dele, ainda existe um racismo mais ostensivo do que em solo francês.

Mas voltando à performance desportiva, se os africanos ou os seus descendentes são assim tão talentosos, porque é que as selecções africanas não são campeãs do mundo de futebol, basquetebol, etc.? Faltam recursos financeiros? Como assim, num continente onde jorra petróleo, onde abundam diamantes, cacau e tantas riquezas naturais?

Acaso os africanos e os seus descendentes só podem ser campeões do mundo através de interpostos países? Como, por exemplo, os afro-americanos do basquetebol?

O facto é que África ainda não consegue produzir nem sequer umas barras de chocolate, apesar de deter mais de 40% do cacau do mundo. Há aqui algum paralelismo?

A culpa é dos treinadores europeus que treinam as equipas africanas? Sim, porque no caso do chocolate, parece que a culpa de não haver chocolate africano é ainda dos famigerados colonialistas europeus! Engraçado é que não consta que os suíços tenham estado em África, pelo que não se percebe como fazem tão bom chocolate com o cacau vindo de terras africanas.

Ou será que os “pretos” estão destinados a serem somente bons desportistas e bons bailarinos e cantores?! No Brasil, parecem ser essas as pastas ministeriais que lhes são reservadas...

Como um crioulo cabo-verdiano, pertencente a uma sociedade mestiça que é o somatório de África e Europa, tenho assistido com alguma perplexidade a toda esta onda por cá.

Quando eu era adolescente, era vulgar em Cabo Verde encontrar-se adeptos das mais variadas selecções de futebol, o que se compreende tendo em conta que ainda não tínhamos uma equipa competitiva a nível internacional. O Brasil liderava as preferências com o Rei Pelé, seguido da Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Argentina e, curiosamente, a ex-URSS e a ex-Jugoslávia, que também tinham fervorosos adeptos. Depois veio a era de Maradona e dos seus milhares de fãs por todo o mundo. Nem Portugal tinha muitos aficionados entre nós, visto que não ia sequer aos campeonatos mundiais na altura.

Ou seja, a motivação para a simpatia era, sobretudo, futebolística, não havia a interferência de outros factores. As preferências tinham mais a ver com quem ganhava mais ou pela forma de jogar. Com o passar do tempo e com o advento da televisão, e também a queda das potências do ex-Bloco de Leste, as preferências começaram a mudar. Portugal começou a marcar presença nos grandes palcos, arrastando uma multidão de adeptos que seguem semanalmente o campeonato português.

Mas o que se passa hoje extravasa a questão meramente desportiva. Outros factores começam a ganhar peso. Ouço gente a dizer que quer que as selecções africanas ganhem porque somos africanos, muitos torcem pela selecção portuguesa porque falamos português, etc., etc. Ou seja, fica-se com a impressão de que os factores de motivação tradicionalmente ligados ao desporto em si começam a ser substituídos por outros de foro mais identitário.

Respeito essas novas opções, mas parece-me um claro retrocesso, sobretudo por estarmos no campo desportivo.

Por muito que me esforce, não consigo acompanhar essa onda de triunfalismo que se vive um pouco por toda a África e outras paragens, com a vitória da França.

Porque ela é baseada sobretudo na cor da pele dos jogadores franceses. Se a equipa da França fosse feita com jogadores africanos de pele clara, ninguém andaria por aí a festejar.

À hora em que se realizava a final do Copa do Mundo em futebol, acontecia a final do torneio de Wimbledon, do torneio mais emblemático da modalidade, onde ainda o dress code impõe que os jogadores se vistam todos de branco, como era tradição antigamente. Um dos finalistas era Kevin Anderson, sul-africano “branco”. Não notei nenhuma emoção particular entre os aficionados do ténis por cá, nem me lembro de ninguém o estar a apoiar. Será que era igual se o tenista em questão tivesse a pele “escurinha”?

Ser africano significa, então, ter pele escura?

Afinal, lá no fundo, o pessoal exulta com a ascendência africana dos jogadores franceses, ou com a cor das respectivas peles? Porque se for por causa da cor da pele, estamos a falar de uma motivação de origem racista. Ou estarei enganado?

As pessoas que andaram a partilhar vídeos e fotos da selecção francesa, com dizeres do tipo “África ganhou o campeonato mundial”, tê-lo-iam feito se fossem vídeos dos Le Pen a dizerem o mesmo? Ou nesse caso já seriam franceses racistas a dizerem que os filhos de emigrantes africanos não são franceses?!

A mim, dá-me igual ao litro que no desporto saiam vencedoras equipas africanas, europeias, americanas, asiáticas ou outras. Pelo contrário, faço questão de no desporto, como na vida, me abster de ser influenciado por esse tipo de questões, por uma questão de coerência. Que ganhe o melhor é o lema que sempre sigo. E que seja o melhor dentro das regras do fair play, porque o desporto foi criado por gentlemen. Não será coincidência que muitos dos desportos mais populares tenham sido inventados na velha Albion, a terra que também criou e onde impera até hoje the rule of law!

Tenho, naturalmente, as minhas preferências, que vão muito mais ao encontro da qualidade técnica dos desportistas, do estilo, da regularidade na performance, do desportivismo de uns e outros e, sobretudo, da qualidade artística dos intervenientes. Porque lá no fundo o desporto é arte pura, quando bem praticado. Nasci e cresci numa família de desportistas, onde me ensinaram a cultivar o gosto pelo desporto ao lado da cultura e outras matérias, em pé de igualdade.

É por isso que no futebol só há uma equipa que me faz bater o coração, à parte os Tubarões Azuis: é o Brasil, equipa que aprendi a admirar desde tenra idade pela qualidade artística dos seus desportistas. Os brasileiros conseguem trazer um perfume diferente ao futebol, mesmo nos dias de hoje, em que o pragmatismo aconselha outras formas mais cínicas de jogar. A maneira como tratam a bola, a imprevisibilidade desconcertante da ginga dos seus jogadores ainda é o que me dá mais gozo, mesmo que isso se revele cada vez menos eficaz no mecanizado futebol actual, que, infelizmente, sacrifica a beleza do espectáculo.

Mas se acaso me deixasse influenciar por razões identitárias, muito provavelmente também seria o Brasil a minha equipa, ou outra equipa de algum país crioulo das Américas.

Voltando ao Mundial da Rússia, apesar de também gostar da forma de jogar da França, a mim ter-me-ia agradado mais que vencesse a Croácia, um pequeno país de apenas 4 milhões de habitantes, com um passado recente de guerras traumáticas e que joga um futebol bonito de se ver. Mas acho que o título ficou bem entregue, futebolisticamente falando.

A título de curiosidade, é preciso dizer que, à excepção do Uruguai, todos os países que foram campeões mundiais de futebol possuem mais de 40 milhões de habitantes. O Uruguai também é um pequeno país, de cerca de 3 milhões de habitantes, que fez a proeza de derrotar o gigante Brasil em pleno Maracanã em 1950, fazendo centenas de milhões de brasileiros chorarem. Ainda mais curioso é o facto de o Uruguai ter pertencido ao Brasil (era a antiga Província Cisplatina), do qual se separou na altura da independência do país onde viria a nascer o samba.

Em Inglaterra, tive a oportunidade de conviver com muitos British de ascendência africana e caribenha, alguns com a pele negra “cor de azeviche”, como se costuma dizer. A maior parte deles sabe vagamente onde fica a terra dos pais e avós e não mostram grande interesse em conhecer essas origens, nem de férias.

Duvido que a maioria desses jogadores franceses de origem africana, hoje tão admirados por causa da cor da pele, algum dia se venha a interessar por conhecer algum país africano. Pior ainda seria virem por razões demagógicas do tipo “porque fica bem” por serem estrelas, tipo compromisso social.

Por essas e por outras é que não acompanho essa celebração que anda por aí. Sabe-me a pouco e até acho que é pelos motivos errados, fazendo-nos pisar terrenos muito escorregadios, neste mundo onde a demagogia e o populismo se espalham à velocidade da internet.

Continuo, por isso, como desportista e dirigente desportivo, a cultivar a máxima: que ganhe o melhor, seja de que cor for!

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 869 de 25 de Julho de 2018.

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Autoria:José Almada Dias,31 jul 2018 6:17

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  31 jul 2018 6:17

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