Também queria eu tirar uns dias para me refrescar ao relento do mar. Faz calor a cada dia. Há tempos, cheguei a casa por volta das quatro da tarde e era um calor que me trazia memórias da infância. Aconcheguei-me na rede e abri o portátil ao regaço. Entrei no facebook para ver o que se passava no mundo... Uma amiga me escreveu da ilha do Maio, dizendo que está a curtir as suas férias. Adicionou três fotos da praia de Beach Rotcha para reportar o quão maravilhoso está sendo o seu verão em Djarmai.
Contei-lhe que estive outro dia na minha aldeia que virou cidade. Que o sol estava abafado, nem dava para olhar a ilha do Maio. Contei-lhe dos meus dias de infância e adolescência quando mirávamos aquela ilha, que é a mais próxima da minha aldeia, de tal sorte que até meu avô brincalhão conseguia identificar, apontando a dedo, onde é que fica a casa do nosso tetravô e da nossa tetravó, que mudou para lá e cuja alcunha, Nha Júlia Bapor, se devia directamente ao facto dela se ter casado com um mercador de sal daquela ilha. Isso foi há muito, muito tempo. E é provavelmente esse nosso tetravô um dos primeiros da família a desbravar o mar a caminho da América. Não sabemos se chegou alguma vez ou nunca à terra do tio Sam. Apenas ouvimos a nossa tia mais velha reportar que ele padeceu jovem ainda no alto mar. Viúva de marinheiro, minha tetravó passou a ver o mar só de longe.
Acaba de entrar no facebook um estudante, que se encontra de férias em São Domingos. Confirma-me que continua a ler com entusiasmo o livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Porque tenho um assunto a tratar vou sair do facebook... mas volto mais logo... Não há muitos anos, fiz uma das mais extraordinárias viagens de São Vicente a Santo Antão. Eu sei que foi num fim-de-semana. Lembro-me que acordei por volta das 6h15, com o alarme do despertador. Pretendia chegar ao cais do Porto Grande antes das 7h. A partida do navio Mar d’Canal estava prevista para um quarto de hora antes das 8h. Este barco, que é da companhia Naviera Armas, continua a fazer diariamente a ligação marítima entre as ilhas de São Vicente e Santo Antão. Tendo comprado o meu bilhete, e enquanto aguardava a hora da partida, desviei-me, num instante, em direcção ao bar da cabotagem. Ali, escutei novamente alguém retorquir que, em Cabo Verde, talvez não exista nenhum serviço mais pontual do que o navio que faz a travessia do canal que separa as duas ilhas.
Contudo, desta vez, houve um ligeiro atraso. Quando saímos, tinha estranhamente passado das 8h.
Fiquei instalada no convés superior para melhor apreciar a paisagem, sentir a brisa do mar e observar o manto azul que se estendia no horizonte. Ilhéu dos Pássaros, Monte Cara, Porto Grande. Desvaneciam-se mansamente na belíssima paisagem. Peixinhos voadores entravam em cena, despertando olhares curiosos, e em malabarismos fintavam as aves que os queriam bicar. A viagem à ilha das montanhas foi toda ela tranquila. Entretanto, devido a uma anomalia qualquer, o navio demorou algum tempo a atracar. Desembarquei na cidade do Porto Novo, em Santo Antão, um quarto de hora depois das 9h. Normalmente, a travessia do canal demora apenas 45mn. São ilhas vizinhas, unidas secularmente. De uma é possível apreciar os contornos das montanhas da outra, as casas na zona baixa da cidade do Mindelo de São Vicente ou da cidade do Porto Novo de Santo Antão, e inclusivamente há quem diga sorrindo que do Porto Novo não é totalmente impossível avistar gentes nas ruas do Mindelo.
Um breve pequeno-almoço ainda em Porto Novo. E depois uma boleia num jipe alugado, através da estrada asfaltada Porto Novo «» Janela. Inaugurada em 2009, esta nova estrada, além de enormes precipícios, surpreende as visitas com os dois magníficos túneis, que atravessam rochas antes impenetráveis. Uma excelente obra de arte, engenhosamente desenhada por uma equipa italiana. Instalei-me numa pensão local. Fui lá por razões de pesquisa académica. Então, mal cheguei, iniciei logo os primeiros contactos. A filha de uma informante levou-me até à residência de uma mulher responsável por uma ong local. Logo de seguida, do centro da Cidade das Pombas, desloquei-me numa viatura comercial para a localidade de Eito. Desci defronte à residência de uma outra activista comunitária. Conversámos...
Esperei algum tempo, em Eito, até conseguir um lugar numa viatura para a cidade. Regressei de boleia, numa viatura que transportava funcionários de algum ministério. Fiquei surpreendida ao saber que estavam em observações de terreno, porque era mais fácil reunir o grupo ao fim-de-semana. Como não tinha nenhuma actividade planeada, decidi acompanhá-los. Fomos à ribeira de Janela. Avistámos em cima o Farol de Boi que, tal como o nome sugere, fica defronte ao Ilhéu de Boi. Janela fora outrora estigmatizada como a aldeia das bruxas, marcada pelas estórias de feitiçarias. É na ribeira de Janela que se encontra uma lendária pedra, Pedra do Letreiro, com inscrições antigas, ainda não desvendadas. A curiosidade levou-me à dita pedra. Na minha ignorância, só identifiquei algo que parece ser mesmo um símbolo religioso, quase uma cruz.
Depois de um almoço rápido, segui para a cidade de Ribeira Grande para me juntar a mais um grupo de viajantes. Quando o sol se apaziguou, o anfitrião daquela localidade fez-nos uma visita ao concelho. Visitámos as duas ribeiras do concelho, a larga Ribeira Grande e a estreita Ribeira da Torre, e o centro administrativo que fica na localidade de Ponta do Sol. No final da tarde, regressei à Cidade das Pombas, no Paul. Jantei meia pizza, no restaurante Veleiro II.
Tal como a Cidade Velha, na ilha de Santiago, a Cidade das Pombas é contornada por sumptuosas rochas e banhada por uma bela baía. Traz-me sempre lembranças da Cidade Velha... Eram 23h, e eu ainda estava no restaurante Morabeza, frente à Aldeia Jerome. Tomava um chá de ervas locais, enquanto rabiscava num bloco de notas. Lá fora, ainda estavam algumas pessoas na praça da cidade, mas os três senhores que tocavam o violão no Bar da Curva já não se encontram aí. Ali, no restaurante, estavam três homens ligados a esse serviço de restauração, dois casais de turistas e eu. Depois fui dormir, com ondas brabas a bater no paredão externo do quarto onde me encontrava instalada no Paul Mar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 874 de 29 de Agosto de 2018.