Quando fomos às Seychelles, há mais de 4 anos, constatámos que os nossos primos crioulos do Índico nos batiam em quase tudo (apesar de terem menos 200 anos de existência), menos em dois aspectos: na beleza feminina e na relação com a música.
Ainda há dias um amigo meu, pintor e artista plástico internacionalmente conceituado, reclamava, ao chegarmos a um pub, que “em todos os lugares só há fotos de músicos, aos outros artistas ninguém liga!”. Não será propriamente assim, mas, de facto, a música tem um lugar privilegiado nos nossos corações crioulos verdianos. Foi ela que sempre nos acompanhou na nossa sofrida existência de 500 anos, aqui nestes “dez grãozinhos di terra” e “na terra longe”.
Quando cheguei a Portugal nos anos 80 para estudar, foi difícil convencer os meus colegas e professores de que não tocava nenhum instrumento musical. Muitos deles tinham vivido nas ex-colónias portuguesas e amiúde diziam-me: “se és cabo-verdiano, tens de saber tocar!” A pressão foi tanta que lá aprendi a arranhar umas notas de violão, em plenas terras algarvias, o que, aliás, serviu para aliviar as saudades durante seis longos anos, com o privilégio de ter aprendido com um maestro, Carlos Germano, uma das melhores vozes masculinas que este país produziu e exímio executante de violão, sempre acompanhado pela voz doce da sua esposa Ana Maria.
Nessa altura, nas urbes verdianas, consumíamos avidamente as músicas que nos chegavam dos vários cantos do mundo, trazidas pelos emigrantes ou pelas emissoras radiofónicas do país e do estrangeiro.
No Mindelo, para além das tradicionais noites cabo-verdianas, sobretudo às quintas-feiras, em famosos restaurantes como North Country, Ofélia e outros, despontavam lugares onde se podia apreciar música alternativa. Quem não se recorda do Piano Bar ou da Galeria Nhô Djunga, espaços que marcaram várias gerações.
Foi na Galeria Nhô Djunga, num espaço musical inventado por Vasco Martins por cima da casa do famoso Nhô Djunga, que tive os meus primeiros contactos com o jazz e outras músicas do mundo. Recordo como se fosse hoje, eu com apenas 17 anos, juntamente com outros colegas, a deliciar-me com os solos de Tólas, Vasco Martins, o baixo de Pinúria, o sopro de Pomba e tantos outros. Também foi nesse espaço que vi pela primeira vez Travadinha com o seu violino e aprendi empiricamente que a música não tem fronteiras, sobretudo quando ela nos vem de dentro. Ver Travadinha a executar mornas e coladeiras num espaço jazzístico ensinou-me que jazz é isso mesmo: não se explica o que é...
Na minha viagem de fim de curso, os meus colegas lusitanos insistiram em vir conhecer Cabo Verde, a terra do único “estrangeiro” da turma. Na nossa passagem pelo Mindelo, vimos Cesária Évora cantar de graça durante quase 2 horas no Piano Bar, onde chegou a meio da noite descalça e sedenta de combustível (leia-se scotch), como ela me disse, quando fui pedir-lhe para cantar para a minha turma, que vinha com o Reitor e alguns professores da Universidade do Algarve. Poucos meses depois, Cize abalou para uma impensável carreira internacional e os meus colegas portugueses até hoje me agradecem por terem tido a oportunidade de ouvir a “Diva dos Pés Descalços” sem pagar um tostão. Foi por pouco, por uma questão de meses...
Regressado a Cabo Verde no início da década de 90, iniciei a minha actividade profissional na capital do país, onde ia quase todos os dias ao pub Tex, no Plateau, lugar onde, de segunda a segunda, se ouvia excelente música em madrugadas que não findavam.
O país entretanto evoluiu e com ele ampliou-se a nossa relação com a música, traduzida hoje em dia em dezenas de festivais que debitam nos céus atlânticos destas ilhas milhares de decibéis, naquele que deverá ser um dos países com mais festivais de música per capita do mundo.
Um dos melhores exemplos dessa evolução é o Kriol Jazz Festival (KJF), que se realiza há uma década na cidade da Praia, por iniciativa do conhecido empresário Djô da Silva, o homem que promoveu Cesária Évora no mundo.
Segundo informações que pude apurar junto de pessoas ligadas à administração do evento, o KJF foi inicialmente previsto para ser na cidade do Mindelo, berço de Cesária Évora, Bana e tantos outros, e cidade de eventos culturais por excelência. Segundo me informaram, não terá havido uma resposta adequada da Câmara Municipal de São Vicente, e o promotor terá, de seguida, tentado implementá-lo nas ilhas do Sal e da Boa Vista, onde não houve igualmente uma resposta à altura. Na quarta tentativa, o promotor acabou por ser bem recebido pela Câmara Municipal da Praia, onde o festival se fixou e evoluiu para uma referência internacional, trazendo anualmente à capital do país momentos inesquecíveis de boa música.
Não tive oportunidade para tentar apurar as razões que terão levado as câmaras municipais das ilhas de São Vicente, Sal e Boa Vista a não agarrarem uma iniciativa desta envergadura. Mas existe um resultado prático: essas ilhas e os seus munícipes ficaram privados de um grande evento internacional.
Mas fiquei a saber que a administração do KJF continua a tentar fazer uma edição no Mindelo, paralelamente à da Praia, o que lhe traria economias de escala e poder de negociação com os grupos musicais. Até hoje não foi possível, apesar de nos últimos tempos ter conseguido que a Câmara Municipal de S. Vicente aceite pelo menos um grupo brasileiro, como foi o caso de Seu Jorge neste ano. Já é algum avanço, mas continua a ser difícil ser empreendedor nesta terra...
No meio disto tudo, a cidade do Mindelo não se deixou abater como é seu timbre nem ficou a ver navios a passarem e muito menos se quedou em lamúrias, como um conhecido primeiro-ministro uma vez quis insinuar a propósito do espírito reivindicativo dos mindelenses (pessoas com mentalidade autocrática lidam mal com manifestações democráticas...). Três anos após a primeira edição do KJF na capital do país, nasce na capital cultural de Cabo Verde o Mindel Seasons Jazz (MSJ), que se divide entre o Mindel Summer Jazz, que se realiza nos meses de Verão, e o Mindel Windy Jazz, nos meses de “Inverno”.
Uma iniciativa totalmente privada, fruto da coragem e audácia de dois empreendedores, Alexandre Novais (“Xázé”) e Pedro Monteiro (“Vou”), que, sem terem experiência de organização de eventos internacionais, se lançaram sozinhos na aventura da criação de um evento desta envergadura.
Como referi na crónica anterior, a propósito do Kavala Fresk Feastival (KFF), isto é o Mindelo e os mindelenses no seu melhor. Esta cidade e os seus habitantes inovam e criam eventos de referência mundial sem esperar apoios públicos. Sempre foi assim e as provas são muitas: Carnaval, Passagem de Ano, Festas Juninas e, mais recentemente, com os pioneiros Festival da Baía das Gatas, Mindelact, KFF e, por fim, o MSJ.
Voltando ao MSJ, baseados na experiência de promoção de noites de jazz crioulo no pub Jazzy Bird (que este ano completou 21 anos de existência), os seus promotores lançaram em 2012 a primeira edição do Mindelo Summer Jazz no espaço cultural Manel d’Novas, e as edições seguintes passaram a ser realizadas no acolhedor pátio da réplica da Torre de Belém, ali mesmo junto ao mar, onde a Vila Leopoldina foi fundada e depois rebaptizada como Mindelo, em homenagem ao desembarque das tropas liberais de D. Pedro, os chamados “bravos do Mindelo”, que ocorreu a 8 de Julho de 1832 na praia do Mindelo, durante a Guerra Civil Portuguesa, considerado o dia em que a liberdade começou a vencer o absolutismo, a escravidão e a tirania. Uma cidade baptizada com um nome que é um hino e celebração da liberdade.
Na sua sétima edição, neste ano de 2018, já maduro, o MSJ deixou a beira-mar para se instalar no coração da cidade, no pátio do Liceu Velho, entrincheirado entre o edifício que mais elites formou neste país e o majestoso palácio onde se podem apreciar a exposição Cesária Évora, expoente máximo da nossa música a nível internacional, e ainda a maior exposição de arte africana que existe em Cabo Verde, denominada “Akuaba”, que em língua ashanti, uma língua africana, significa “bem-vindos”.
A localização não podia ser melhor, e o MSF deu neste ano um salto qualitativo, catapultando-o para uma nova dimensão, ao mesmo tempo que recria o caminho do mar para a terra que os cabo-verdianos de todas as ilhas fizeram quando aqui chegaram para formar esta cidade atlântica e cosmopolita.
Nascido de uma iniciativa 100% privada, o MSJ teve, desde o início, o apoio fundamental de empresas privadas. A IMPAR, uma empresa também com génese mindelense, foi apoiante desde a primeira hora, juntando-se a CV Telecom após a terceira edição. Em 2014, a Câmara Municipal de São Vicente entrou, permitindo a vinda dos grupos estrangeiros e a consequente internacionalização do evento. O Ministério da Cultura começou a patrocinar o evento a partir de 2016, e desde 2018 passou a conduzir um processo de relacionamento institucional com o Berklee College of Music de Boston, visando uma componente formativa para os jovens artistas nacionais.
O jazz é uma música crioula, nascida em terras crioulas do Novo Mundo, fruto da confluência de gentes vindas dos vários cantos do mundo, trazendo consigo as suas músicas e as respectivas saudades.
É por isso absolutamente normal este sucesso que o jazz vai fazendo nestas ilhas que viram nascer a primeira sociedade crioula do mundo moderno. Pelos palcos do KJF, na Praia, e do MSJ, no Mindelo, já passaram artistas de uma qualidade que há algumas décadas nunca teríamos sonhado ver ao vivo. Estão de parabéns os promotores desses eventos e a nação verdiana deve-lhes um grande reconhecimento. De parabéns estão igualmente as câmaras municipais da Praia e do Mindelo e o Ministério da Cultura. O djunta mon começa a ser realidade!
No espaço onde existiu a Galeria Nhô Djunga, onde fiz a minha iniciação ao jazz e outras sonoridades, existe hoje a Livraria Nhô Djunga, que, após o pôr-do-sol, se trasveste em espaço musical, onde se podem ouvir grandes nomes como Bau, Morgadinho e tantos outros. A música sempre connosco…
Estou convencido de que este pequeno país que se quer dar a conhecer ao mundo, e atrair para cá milhões (!) de turistas, continuará a ter na sua relação privilegiada com a música um dos seus principais activos promocionais.
Bem haja a música em Cabo Verde, bem hajam os seus compositores, autores, intérpretes, promotores, apreciadores e população em geral.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.