Frente a frente, Serena Williams, uma lenda viva da modalidade, com uns inacreditáveis 37 anos, e Naomi Osaka, uma japonesa de “raça” negra, com apenas 20 aninhos.
Até aqui, tudo bem, não fossem as particularidades da avançada idade da campeoníssima Serena, ao que se acresce o facto de ter sido mãe há menos de um ano, e de ambas serem de “raça” negra, num desporto considerado de elites.
Ainda mais raro o facto de termos uma japonesa de pele escura, nascida no Japão, criada desde os 3 anos nos EUA, filha de pai americano de origem haitiana e mãe japonesa. Uma rapariga com uma estória de todo pouco vulgar.
Feito um breve enquadramento identitário das finalistas, passemos a outros dados interessantes.
Como é do conhecimento geral, a jovem Naomi Osaka venceu a final, derrotando a sua ídolo de infância. Ela própria afirmou várias vezes que, quando era criança, tinha o quarto cheio de posters de Serena e à noite sonhava enfrentá-la em finais de grandes torneios. Todos sonhamos e o sonho deve comandar a vida, mas poucos conseguem ver os seus sonhos de criança tão bem concretizados, como é o caso.
Com este feito, Naomi tornou-se a primeira jogadora de ténis nascida no Japão a ganhar um título do Grand Slam e embolsou a simpática quantia de 3,8 milhões de dólares! Recupero um raciocínio feito numa outra crónica: um licenciado que ganhe 3 mil dólares por mês precisaria de trabalhar 106 anos para amealhar a quantia que a jovem de 20 anos ganhou em 15 dias de cansativo mas “prazeroso” trabalho. Resta dizer que Naomi já tinha ganho 3,2 milhões de dólares na sua curta carreira, a que se junta mais este prémio. Com apenas 20 anos, é caso para afirmar que a procissão ainda nem saiu da igreja...
Fruto da meteórica ascensão desta atleta, a marca desportiva Adidas prontificou-se menos de uma semana depois a assinar com ela o maior contrato publicitário alguma vez assinado com uma desportista: 8,5 milhões de dólares anuais!
Para além disso, fora anteriores contratos com marcas como a Yonex e a Citizen, Naomi assinou mais um contrato publicitário com a fabricante de carros japonesa Nissan. Enfim, nada mau para começar...
Impõe-se a pergunta: estas marcas andam a perder o juízo, esbanjando tanto dinheiro assim com uma atleta de apenas 20 anos? Se há coisa que não falta é juízo às grandes corporações. De acordo com a revista Forbes, só nos EUA, 2 em cada 5 meninas praticam desporto, numa indústria que vale anualmente 15 biliões de dólares. E acrescenta ainda que, nos States, 59% das mulheres que trabalham são fãs de desporto. Por isso...
Vamos agora aos factos menos positivos. A final ficou marcada pelas reclamações de Serena com o árbitro português Carlos Ramos, que atingiram o nível do insulto quando a jogadora apelidou o árbitro de ladrão. Este, imperturbável, penalizou a estrela norte-americana, o que motivou a interrupção do encontro, com a entrada em campo das autoridades do torneio.
Um triste episódio para os milhões de fãs deste elegante desporto, conhecido pela cultura de fair-play que incute aos seus praticantes. Mais triste ainda para os milhões de fãs da campeã Serena, entre os quais se inclui este vosso cronista.
Apesar da admiração que uma atleta desta craveira nos suscita, temos todos que reconhecer que ela esteve mal, muito mal.
Podemos todos lembrarmo-nos de que os campeões também são seres humanos, que Serena queria bater mais um recorde de títulos, que foi mãe há menos de um ano, que por isso mesmo queria mais do que nunca ganhar mais um título desta categoria, apesar dos muitos que já possui, etc., etc. Mas fica-nos o gosto amargo na boca de ter visto pela televisão que o seu treinador, o conceituado Patrick Mouratouglou, dono de uma das academias de ténis mais modernas e caras do mundo, no Sul de França, lhe estava a dar indicações da bancada, algo que é proibido na modalidade.
Com espanto, vimos Serena negar o facto, quando o árbitro o assinalou e, com maior espanto ainda, ouvimo-la referir-se ao facto de nunca ter feito batota, usando a recente maternidade para assegurar o seu juramento, numa clara tentativa de chantagem emocional.
Já no segundo set, assistimos, atónitos, a um segundo episódio, com Serena a insultar o árbitro, chamando-lhe de ladrão, ameaçando-o de que nunca mais arbitraria um jogo e, de seguida, a mandar parar o jogo e a chamar as autoridades do torneio, dizendo que estava a ser vítima de sexismo, pois aos tenistas homens é-lhes permitido fazer coisas piores!
Foram momentos tristes, que preferíamos não ter visto a acontecerem na modalidade e muito menos a serem protagonizados por uma campeã como Serena Williams, que é seguida por milhões de fãs, particularmente jovens, que a idolatram e a têm como exemplo.
Poucos desportos terão feito tanto pela igualdade de género como o ténis. Apesar de as finais masculinas proporcionarem muitas vezes o dobro da audiência das femininas, os prémios masculinos e femininos são iguais, o que mostra o quanto a modalidade resistiu à tentação de ser orientada apenas por motivos de ordem comercial ou economicistas, que seriam até compreensíveis dadas as elevadas somas monetárias em jogo.
A responsabilidade dos grandes campeões é proporcional à sua popularidade e aos milhões que auferem. E a primeira responsabilidade é para com os fãs, sobretudo os jovens, que precisam de ter ídolos que sejam bons exemplos de carácter e que transmitam valores éticos.
Num tempo dominado pelas redes sociais, o mediatismo das figuras públicas é exponencialmente maior e cada gesto que executam é escrutinado ao pormenor. É o preço a pagar, não há muito a fazer quanto a isso.
Alguma imprensa norte-americana tentou veicular acusações de racismo neste caso, o que é francamente absurdo, tratando-se das atletas em questão. Fico a imaginar se a adversária fosse uma japonesa “pura”. Aí então a cartada do racismo teria sido jogada com toda a força...
Houve quem tivesse chegado ao ponto de ir buscar um suposto tradicional machismo latino do árbitro, por ser português, para defender Serena! Ao ponto a que algumas mentes são capazes de chegar... O árbitro esteve bem e as penalizações aplicadas só pecaram por terem sido brandas.
Uns dias depois deste lamentável incidente, tive a ocasião de conhecer aqui no Mindelo um tio de Naomi Osaka, irmão do seu pai, que veio a São Vicente de férias com uns amigos cabo-verdianos residentes nos EUA. Tive a oportunidade de privar com ele alguns dias e ele contou-me que, quando era jovem, foi jogar futebol profissional no Japão e levou com ele o irmão como seu agente. Os dois acabariam por se casar com duas japonesas, uma das quais é a mãe de Naomi. Alguns anos depois, os dois irmãos e as respectivas famílias regressaram aos EUA, numa altura em que Naomi tinha 3 anos de idade.
Confirmou-me que o irmão teve que apelar para a Federação Japonesa de Ténis, porque a sua congénere americana não deu valor à promissora Naomi. Quando lhe disse que imaginava o quanto os americanos deveriam estar a contorcer-se de raiva, respondeu-me, meio a brincar, que a Nike deveria estar em lágrimas com o acordo assinado com a Adidas – deixaram escapar em pleno solo americano uma estrela ascendente que foi capturada pelos europeus. É assim a vida...
Contou-me que tem um filho profissional de futebol e que o inscreveu na Federação de Futebol do Haiti, porque nos EUA a resposta estava a ser lenta, um caso semelhante ao da sobrinha Naomi. Quem sabe, dentro de algum tempo ouviremos falar de um primo de Naomi, muito parecido com a tenista, que também terá ascendido ao estrelato debaixo dos narizes do país adoptivo.
Esta questão levanta sempre algumas interrogações. Naomi nasceu de facto no Japão, mas nem fala a língua japonesa, exprimindo-se somente em inglês. Formou-se como tenista nos EUA, mas representa o Japão. Até que ponto iremos neste “comércio” de atletas, sobretudo quando os milhões começam a chover cada vez mais no desporto?
Cabo Verde também já se fez representar internacionalmente por atletas que nunca antes tinham tido nenhum contacto directo com o país e que nem falam nenhuma das nossas duas línguas. Fazem parte da nossa diáspora, como é evidente, por isso à partida não deve haver questionamentos, particularmente num país pequeno e sem meios para formar grandes desportistas.
Para um país cuja maior indústria é o turismo, eu diria que a participação em grandes eventos internacionais e a sua organização entre portas são, no mínimo, estratégicas, algo que já defendi aqui neste espaço, pelo que se compreende que as federações desportivas nacionais lancem mão deste expediente, que acaba por beneficiar ambos os lados, como se verificou com Naomi Osaka: nem ela teria chegado aonde chegou, nem o Japão estaria hoje a celebrar a entrada no clube restrito dos países que possuem um tenista que ganhou uma prova do Grand Slam (neste caso, com a possibilidade de vir a ganhar muitos mais, dada a juventude da atleta).
Regressando à final do US Open, nem tudo acabou mal e vimos uma maternal Serena Williams a consolar a sua jovem adversária, que, no final do encontro e na hora da cerimónia de atribuição dos prémios, estava banhada em emotivas lágrimas, contidas durante 15 dias e particularmente durante 1h19m, tempo que levou a derrotar a sua ídolo de infância. Passado o momento menos feliz, a campeã recuperou o fair-play e a dignidade que sempre caracterizaram a sua já longa carreira, fechando este episódio de vitimização fortuita, infelizmente tão comum nos dias de hoje.
O desporto sempre foi, e esperemos que permaneça, uma escola de formação de homens e mulheres dignos, que respeitam os adversários e que cultivam os mais altos valores.
Que o cultivar desses valores se continue a sobrepor ao mediatismo e ao imediatismo alimentados pelos milhões e por interesses diversos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 880 de 10 de Outubro de 2018.