Em 1978, a China era um país pobre, essencialmente agrícola e profundamente rural, com uma economia estagnada e atrasada do ponto de vista tecnológico, e uma população isolada do mundo.
Ciente de tudo isso, ao ascender ao poder, Deng Xiaoping apresentou ao país uma nova visão baseada no lema “Reforma e Abertura”. Adoptou frases que se tornaram famosas, como “Pobreza não é socialismo.” e “A chave para conseguir a modernização é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia”. Enviou milhares de estudantes para as melhores universidades mundiais, encorajando o desenvolvimento do talento e da iniciativa individual e incentivou a atracção e fixação do capital estrangeiro. Em resumo, fez precisamente o contrário do que tinha sido feito antes, durante o regime comunista dos seus antecessores.
A revista Courrier international dedicou no mês passado um número especial à China, em cujo editorial consideram que um dos maiores feitos de Deng Xiaoping foi ter alterado o contrato social entre o Partido Comunista e o povo chinês, assumindo “(...) que os líderes do PC devem centrar os seus esforços na melhoria das condições de vida do povo e, todos os dias, precisam de demonstrar que o estão a conseguir. Se falharem, esse contrato será quebrado e a sua liderança ficará seriamente abalada”. Nada mau para um regime que, para todos os efeitos, está longe de ser democrático.
O editorial prossegue: “(...) mesmo que não seja fácil de admitir do lado Ocidental, a verdade é que os líderes de Pequim têm cumprido esse contrato (...)”, citando que, nestes 40 anos, 800 milhões de pessoas foram resgatadas da pobreza e a população urbana passou de 170 para 820 milhões. Tudo isso conseguido com “(...) uma estranha estabilidade social e um crescimento económico invejável, o que lhe dá [à China] uma rara oportunidade de surgir como modelo alternativo em muito pontos do mundo (...)”, num momento em que o Ocidente se vê mergulhado em clivagens e derivas populistas.
Em 1979, a China cria 4 zonas económicas especiais em Shenzhen, Shantou, Zhuai e Xiamen, com o objectivo de atrair investimento estrangeiro. São criadas também leis especiais para essas zonas, que abarcam questões sensíveis como a propriedade dos terrenos e as relações laborais.
Tive a oportunidade de, juntamente com os meus colegas, assistir a um curso sobre essas zonas económicas especiais (ZEE), cortesia do Ministério do Comércio da China. É pena que metade da população cabo-verdiana não possa assistir a esse curso, a começar por muitos dirigentes políticos e não só.
O nosso primeiro dia de aulas foi num domingo (chegámos numa sexta-feira), logo pelas 8h da manhã, que isto do tempo ser dinheiro é levado a sério por aquelas bandas. Não houve sequer oportunidade para nos refazermos da longa viagem e do jet-lag. Na semana seguinte, tivemos aulas ao sábado, de manhã e à tarde, e aulas no domingo à tarde.
O primeiro dos vários professores que tivemos é um consultor reformado, ex-CEO da TEDA (Tianjin Economic Development Area), empresa que criou e gere até hoje a ZEE da cidade de Tianjin, uma cidade-porto onde estabelecemos a nossa base e que fica a 2h30 de autocarro de Pequim.
Um homem que contagia pela forma entusiástica com que nos relata todo o processo de desenvolvimento da ZEE de Tianjin, em que ele participou desde o primeiro dia, quando ainda jovem se atirou à tarefa de transformar quilómetros de pântanos no que é hoje uma moderníssima zona industrial, cercada por uma igualmente moderníssima zona residencial, uma nova cidade, onde habitam milhões de pessoas vindas de todos os cantos da China e do mundo. Percebe-se o entusiasmo de quem participou numa nova Grande Caminhada e numa nova Revolução. Confesso que senti até um pouco de inveja do homem, pela sorte que ele teve de participar em algo tão grandioso para o seu próprio povo, transformando-o num homem realizado que morrerá de consciência tranquila quando chegar a sua hora.
Mesmo vendo a sequência fotográfica que nos é mostrada e visitando depois o parque industrial e a nova cidade, com direito a ver a gigantesca maquete em três dimensões, custa a acreditar que tudo aquilo foi feito em tão poucos anos. Mas passamos a não ter dúvidas de que o que está previsto na maquete, que é igualmente grandioso e ambicioso, será brevemente realidade.
Estão lá as marcas industriais mais importantes do mundo, desde as fabricantes de aviões Boeing e Airbus a empresas do ramo alimentar, e até as mais modernas empresas de inteligência artificial. Ali são fabricados cerca de 4 aviões Airbus por mês, e todos os Boeing que circulam nos ares deste planeta possuem peças fabricadas naquele parque industrial. Um cenário muito diferente das imagens que vimos do momento da inauguração da primeira fábrica que se instalou na TEDA, propriedade de uma pequena empresa dinamarquesa que fabricava bicicletas.
Nos dias seguintes de formação, tivemos aulas com vários professores que nos ensinaram tudo sobre as ZEE e assuntos relacionados: legislação, fiscalidade, planeamento, alfândegas, etc. Todos foram unânimes num ponto: na recomendação para acarinharmos o investimento externo, num discurso coerente e perfeitamente alinhado.
O pensamento fugiu-me para as fábricas do parque industrial do Lazareto na minha ilha de São Vicente, onde se tentou na década de 90 iniciar algo semelhante, atraindo e fixando fábricas, inclusive vindas da Ásia (e da Europa), mas que o amor à terra de alguns hostilizou e expulsou, lançando no desemprego centenas de mães de família... Enquanto isso, na China faziam precisamente o contrário: criavam milhões de postos de trabalho através da atracção de fábricas de empresas estrangeiras.
A China adoptou desde 1978 uma política preferencial de atracção de investimento, atribuindo terrenos mais baratos para os investidores externos. Em Cabo Verde, um Governo que se atrevesse a sugerir uma medida dessas teria de enfrentar massivas manifestações de rua. Os comunistas da China evoluíram de forma inteligente, enquanto os nossos (disfarçados de democratas de esquerda) continuam na Idade da Pedra, com as consequências que se conhecem.
Fizemos uma viagem de 3 horas de avião para irmos de Tianjin até à cidade de Shenzhen, uma das primeiras ZEE da China. Viajámos num avião de uma companhia privada chinesa chamada OK Air, pois na China o sector privado está por todo o lado.
Fomos informados de que, em 1978, Shenzhen era habitada por 30 mil almas, a maioria pescadores. Hoje, é uma metrópole moderna com mais de 12 milhões de habitantes, dos quais 98% vieram de todas as latitudes da China e do mundo, criando uma atmosfera moderna e cosmopolita. Mas o que nos deixou siderados é saber que a média de idades da população é de 27 anos!
O aeroporto de Shenzhen possui uma arquitectura moderna e arrojada e uma decoração interior do melhor que há. Reparo com surpresa que existe uma companhia aérea chamada Shenzhen Airlines. De seguida, vejo aviões da Beijing Airlines, Hannan Airlines (nome de outra cidade). Por todos os lados, vêem-se aviões modernos de várias companhias chinesas – Southern China, Air China, etc.
Refeito da surpresa, faço o seguinte raciocínio lógico: se Portugal tem 10 milhões de habitantes e tem a TAP, porque razão cidades com populações superiores não poderão ter a sua companhia aérea?! Nada mais natural, já me habituei às dimensões e à escala chinesas...
Aterrámos em Shenzhen na manhã do dia em que a China estava a inaugurar a alguns quilómetros a maior ponte do mundo, com 55 quilómetros de comprimento, e uns módicos 20 biliões de dólares de investimento! Poderemos contar aos nossos netos que estivemos perto da inauguração de uma das maiores obras da humanidade, que provavelmente, como a Grande Muralha, poderá também ser vista do espaço.
A cidade de Shenzhen é a capital da tecnologia da China. Esta antiga urbe de pescadores foi escolhida estrategicamente por Deng Xiaoping para instalar uma das primeiras ZEE da China, por ficar mesmo perto de Hong Kong. Contaram-nos que, volvidos 40 anos, hoje Shenzhen ultrapassou a sua rica vizinha Hong Kong em PIB per capita, transformando-se numa cidade do primeiro mundo.
Não admira, portanto, o movimento de gente na rua dia e noite, ainda para mais numa cidade com um clima tropical aprazível. Chegámos numa terça-feira e regressámos numa sexta-feira. Vimos pessoas a dançar nas ruas todos os dias à noite, enchendo as praças da cidade. Numa dessas praças, pude filmar casais a dançarem tango, rodas de pares a dançarem valsa, a alguns metros, jovens fazendo piruetas de break-dance, para além de grupos de danças chinesas tradicionais com leques. Fiquei a imaginar como seria o movimento à noite no fim-de-semana! E nós por cá convencidos de que gostamos de dançar...
Até vimos uma aula que parecia um misto de técnicas de passagem de modelo com danças sensuais, em que um grupo de jovens chinesas vestidas com umas saias justas, com atrevidas rachas que subiam até ao limite das coxas, ensaiavam sensuais e voluptuosos movimentos em público, dos quais os olhos da populaça teimosamente se recusavam a afastar-se.
A todo este ambiente cosmopolita e moderno, junta-se a cereja em cima do bolo: segurança! Na China, ninguém se lembra sequer que existem assaltos, ou outro tipo de delitos. Não me lembro de em nenhum país do mundo, nem na civilizada Noruega, ter sentido uma tal sensação de segurança, seja de dia ou de noite.
Deng Xiaoping morreu em 1997, numa altura em que a sua visão e reformas começavam a dar frutos na China. Um grande líder, que teve a humildade de importar o modelo das ZEE, que já era um sucesso em Singapura e outras regiões do mundo, e que teve a inteligência de o aplicar em zonas estrategicamente próximas de mercados como Hong Kong.
Hoje, a China inteira é um caso de sucesso graças a essa visão. Percebe-se que o modelo esteja a ser exportado. Encontramos por lá outros “estudantes” a fazerem o mesmo curso em Tianjin, vindos da Etiópia, do Suriname, do Sri-Lanka, da Ucrânia, entre outros.
Uma alegre e ruidosa crioula do Suriname disse-nos, com algum espanto, que éramos muito parecidos com eles. Sempre ciente da minha crioulidade cabo-verdiana e do seu lugar na História, respondi-lhe que eles é que se pareciam connosco, como já tinha feito nas Seychelles e sempre que encontro outros crioulos por esse mundo fora.
Regressámos todos de lá com a convicção de que o milagre chinês, como pudemos constatar ao vivo e a cores, está vivo e cheio de cores.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.