Foi no lado direito desta praia que foi erguida aquela que se supõe ser a primeira capela da ilha de São Vicente, a Capela de Santo André.
Segundo rezam vários relatos, era no Sul da ilha de São Vicente que as tripulações de embarcações da pesca de baleia se abasteciam de água fresca, e onde faziam boas capturas, dada a riqueza do mar nessa zona. Terá sido essa a razão da construção da Capela de Santo André nessa zona, um santo ele próprio pescador.
A primeira menção à Capela de Santo André data de 1875, e o próprio capitão-de-fragata e historiador Christiano José de Sena Barcellos menciona no seu livro “Roteiro do archipelago de Cabo Verde”, de 1892, a existência neste lugar de uma capela dedicada ao Santo.
Há evidências escritas que indicam que o povo da ilha vinha a pé desde a cidade do Mindelo para nessa capela celebrarem os santos religiosos. Chegavam na véspera, acompanhados de músicos que animavam as noites que antecediam as festas de São João, São Pedro e Santo André. A música (e o mar) sempre connosco, ao longo da História...
Até recentemente, a capela foi usada para casamentos e baptizados, sendo sempre frequentada aos domingos pela população da vizinha aldeia piscatória de São Pedro, até que, de há uns anos a esta parte, coincidindo com a construção de uma igreja na referida aldeia piscatória, a Capela de Santo André terá entrado em estado de abandono e visível degradação.
E é aqui que entra o Clube Rotário do Mindelo, que tomou a iniciativa de liderar um projecto de completa restauração da capela, com o apoio da Igreja Católica na ilha e da própria edilidade.
Os clubes rotários encontram-se espalhados pelo mundo inteiro e são membros do Rotary International, um movimento que nasceu nos Estados Unidos da América no ano de 1905. O lema do movimento rotário é “dar de si antes de pensar em si”, e reúne homens e mulheres que se destacam nas suas comunidades a nível profissional e pela sua conduta ética e moral, unidos pelo espírito de ajudar os mais necessitados.
No site da organização pode ler-se a seguinte descrição: “O Rotary é uma rede global de líderes comunitários, amigos e vizinhos que vêem um mundo onde as pessoas se unem e entram em acção para causar mudanças duradouras em si mesmas, nas suas comunidades e no mundo todo”. E ainda quanto aos seus objectivos: “promover a paz, combater doenças, fornecer água limpa e saneamento, cuidar da saúde de mães e filhos, apoiar a educação e favorecer o desenvolvimento económico.”
A organização conta com cerca de 35 000 clubes no mundo inteiro, sendo que existem três em Cabo Verde: um na cidade do Mindelo e dois na cidade da Praia.
Ao longo de vários anos, o Clube Rotário do Mindelo tem vindo a fazer intervenções de vulto, sobretudo nas áreas da saúde, como são exemplos o financiamento de equipamentos de saúde para o Hospital Baptista de Sousa, o financiamento da formação de assistentes de saúde em várias ilhas para o reconhecimento precoce das crianças com a doença do pé boto e o financiamento das respectivas operações de correcção, a oferta de centenas de camas de hospital e cadeiras de rodas, bem como o financiamento da restauração de uma escola em Santo Antão, aonde duas vezes por ano os membros do clube se deslocam para doar material escolar, roupas e mantimentos a crianças e respectivas famílias.
Regressando à missa do passado dia 30, ao escutar o sermão de Dom Ildo, dei-me conta da coincidência de estarem presentes, na mesma praia, os dois irmãos apóstolos, os pescadores Pedro e André, um do lado direito e outro do lado esquerdo, como que a protegerem os pescadores que labutam nessa baía. Os dois irmãos pescadores, que Jesus encontrou a pescar e que aliciou a segui-lo, para os transformar em “pescadores de homens”, tendo-se tornado dois dos mais influentes apóstolos.
Foi um sermão assertivo e recheado de mensagens aos fiéis, particularmente aos menos assíduos. Ao confrontar-me com a eloquência de Dom Ildo, não pude deixar de me lembrar ali mesmo das célebres palavras do Padre António Vieira, quando da sua passagem, a caminho do Brasil, pela cidade da Ribeira Grande na ilha de Santiago (hoje Cidade Velha) no longínquo ano de 1652. Notou Vieira que, na primeira cidade europeia dos trópicos, “[h]á aqui clérigos e cônegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas Catedrais...”
Imaginei se por artes mágicas o Padre António Vieira aparecesse naquele dia e ouvisse o Bispo do Mindelo… Dom Ildo não possui a pele negra como azeviche dos seus antecessores da Ribeira Grande, certamente por causa do longo processo de miscigenação entre povos de origem europeia e africana que criou esta primeira nação crioula do pós-Descobrimentos (ou Achamentos), mas, por certo, teria causado a mesma admiração ao Padre António Vieira, que ficaria contente por ver bispos nativos na terra de onde, segundo várias fontes, era originária a sua família materna.
Foi um momento de regozijo para todos os presentes ver o excelente trabalho de restauração da Capela de Santo André, que contou com a criatividade dos alunos do Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura do Mindelo (M_EIA). Recomendo vivamente uma visita à nova capela.
Esta crónica tem vindo recorrentemente ao longo dos anos a defender que o turismo é o motor da economia cabo-verdiana e que, se quisermos que esse turismo sirva, de facto, os interesses de um desenvolvimento sustentado do nosso país, ele terá que ser sobretudo assente na valorização da nossa história e da nossa cultura, como elementos diferenciadores.
Na crónica “História, Cultura, Património e Turismo Urbano (I)”, que escrevi em Junho de 2016, cheguei a afirmar que “Não há turismo de qualidade sem o envolvimento da história e da cultura”.
O Clube Rotário do Mindelo percebeu isso e, para além motivações religiosas e sociais para o restauro da Capela de Santo André, acrescentou a preocupação de inscrever a referida capela dentro dos roteiros turísticos da ilha.
As igrejas católicas cabo-verdianas são muito mais do que locais de culto da maior confissão religiosa nacional. Fazem parte da nossa história enquanto povo, são elementos extremamente relevantes do nosso património material e imaterial. A religião católica foi e continua a ser fundamental na construção da nossa identidade crioula cabo-verdiana e pela sua forte ligação às tradições judaico-cristãs, que determinaram e enformam a nossa maneira de ser e estar no mundo.
Nesse sentido, o lema “dar de si antes de pensar em si” dos clubes rotarianos assenta como uma luva na nossa forma de estar no mundo, por ser também profundamente cristão e católico na sua essência.
Num mundo em que todos se queixam de individualismos e egoísmos excessivos, de populismos demagogos e interesseiros, faz bem à alma estar envolvido em acções desta nobreza de espírito e pertencer a grupos como os clubes rotários, que possuem lemas e práticas tão nobres, tão generosas. Felizes as sociedades onde os homens se organizam com esse tipo de propósitos.
Uma palavra de apreço especial para o companheiro Per Tam, um sueco que escolheu Cabo Verde para viver, morando na localidade de Santo André, onde possui um restaurante que recomendo a todos os que visitem a ilha. Para além da ideia inicial da restauração da capela ter partido dele, o seu entusiasmo e empenho foram decisivos, juntamente com os de outros membros do clube como os companheiros Emanuel Miranda, João Santos, entre muitos outros.
Entre os presentes na missa, tenho de destacar a aniversariante Rosália Vasconcelos, uma mindelense com origens alentejanas, uma distinta senhora da nossa sociedade, com uma obra incomensurável na educação, na área empresarial e nas causas sociais. Foi um dia de muita festa.
Para fechar a jornada, um cocktail oferecido pelos empresários belgas do empreendimento turístico São Pedro Hills, já em fase de construção, que se associaram à causa, cientes da importância da preservação desse relevante património. Um cocktail servido no restaurante do companheiro Per Tam, abençoado pela presença de Dom Ildo Fortes, um homem culto e de boa conversa, e que não se furta ao convívio com as ovelhas do seu rebanho.
No sempre bonito pôr-do-sol da bela praia de São Pedro, na localidade de Santo André, e no dia desse santo patrono, fez-se história: empresários, estudantes, cidadãos nacionais e estrangeiros, em franca comunhão com a Igreja Católica, juntaram esforços para a preservação do nosso património material e imaterial, que faz parte da nossa herança colectiva.
Foi um dia para recordar por muitos e bons motivos. São dias como estes que nos fazem a todos recordar que é possível fazer muito com tão pouco. Para isso, basta termos vontade de dar de nós antes de pensar em nós mesmos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 888 de 05 de Dezembro de 2018.