À partida, a sua localização remota aliada a um clima inóspito e a uma reduzida população (leia-se mercado) seriam factores mais do que suficientes para fazerem da Islândia um país muito pouco atraente para viver. E, de facto, a vida ao longo da História foi tudo menos fácil para os islandeses, que, durante séculos, viveram no limite da sobrevivência humana, rodeados de vulcões.
No entanto, a Islândia goza nos nossos dias de uma prosperidade invejável, tendo deixado de ser um dos países mais pobres da Europa, para ser um dos mais ricos. São-lhe atribuídos inúmeros títulos elogiosos pela imprensa mundial, particularmente a especializada no sector das viagens e turismo. Recentemente, a revista de viagens brasileira Freeway Viagens publicou uma lista de 18 razões para a Islândia ser o “País Mais Incrível do Mundo”, entre as quais se destacam ser uma “Sociedade Exemplar” ou o “País Mais Seguro do Mundo”. Em relação à segurança, a revista escreve que, para além de “(...) uma das maiores expectativas de vida do planeta, a Islândia também é o lugar mais seguro do mundo, mesmo com vulcões ativos e perigosos. Isso porque a criminalidade lá é praticamente inexistente. O país também não tem exército e nem mesmo a polícia anda armada nas ruas. A cadeia está sempre vazia.”, rematando “Com poucas atividades, a polícia islandesa se diverte e faz sucesso no Instagram”. A confirmar estas descrições, a Islândia manteve em 2018 o galardão de País Mais Seguro do Mundo pelo 11º ano consecutivo, encabeçando uma lista de 163 países analisados anualmente pelo Think Thank Institute for Economics and Peace. A BBC considerou recentemente a Islândia como o “País Mais Amigável do Mundo para Imigrantes”. Cerca de 10,6% da população é estrangeira, quando há duas décadas era apenas 2%.
No capítulo da energia, quase 100% da energia consumida no país provém de fontes renováveis.
Numa sociedade tradicionalmente igualitária, a igualdade de género é levada a sério em todos os capítulos do dia-a-dia – desde Janeiro de 2018, a Islândia tornou-se o primeiro país do mundo que obriga as empresas a demonstrarem que pagam salários iguais a homens e mulheres.
Em termos de conectividade, 97% do território islandês tem cobertura Wi-Fi e todos os estabelecimentos comerciais oferecem conexão rápida e gratuita à internet, transformando um país geograficamente remoto num dos mais conectados com o mundo.
A Islândia hoje dá cartas até no desporto. No futebol, ainda há poucos anos tinha uma equipa fraca que somava derrotas a nível internacional, com jogadores que treinavam em campos de cascalho num clima gélido. A maioria dos jogadores da selecção tem outras profissões (ou seja, não auferem salários milionários) e o próprio seleccionador é dentista. Após um intensivo investimento em infra-estruturas, a Islândia logrou derrotar a poderosa Inglaterra e qualificar-se para o último campeonato da Europa, e cometeu ainda a proeza de se qualificar para o Mundial, no qual empatou 1-1 com a favorita Argentina, um jogo que foi assistido por 99,6% dos islandeses, um país que até há pouco tempo não ligava a esse desporto. Quem acredita que o defesa encarregado de marcar Leonel Messi trabalhava como empacotador de sal e o guarda-redes, que defendeu um penálti do astro argentino, é um produtor de cinema?! Só mesmo na Islândia, só mesmo os islandeses!
Ainda me lembro de há uns anos numa das minhas viagens à Noruega, um treinador de futebol norueguês me ter dito que Cabo Verde devia olhar para o trabalho que a Islândia estava a fazer. De modo que eu, pessoalmente, não fiquei totalmente surpreendido com estas façanhas...
A Islândia é daqueles países que atiram por terra a maioria das teorias (designadamente, económicas) mais tradicionais, batendo recordes e rácios, tudo conseguido à base do engenho das suas gentes, que trazem no sangue o espírito intrépido dos seus antepassados Vikings, que chegaram da Escandinávia, principalmente da Noruega. Como todas as nações deste planeta, a história do povoamento da Islândia (reconhecido oficialmente como tendo sido iniciado no ano de 874 da nossa era) não foi um conto de fadas. Pelo contrário, a ilha foi povoada por Vikings que, no caminho, raptaram mulheres celtas na Irlanda e as levaram como escravas e concubinas. O povo islandês, conhecido pelas suas mulheres louras e bonitas, que encantam nas passerelles deste mundo, e pelos homens altos e fortes, é descendente na sua maioria de homens noruegueses e mulheres irlandesas (não esquecer que a Península Ibérica também foi habitada por celtas, que os portugueses possuem sangue celta, o que faz com que nós também sejamos descendentes dos celtas, uma herança genética comum com os louros islandeses). Mas ninguém na Islândia anda preocupado em resgatar o passado escravocrata da nação...
Na década de 80 do século passado, as autoridades de Cabo Verde decidiram que iriam seguir o modelo da Islândia com uma economia baseada no sector das pescas, o sector no qual aquele país nórdico tinha centrado o início do seu processo de modernização e desenvolvimento. Foi com base nesse sonho que eu e muitos outros jovens da minha geração escolhemos militantemente formar-nos nessa área.
Ao regressarmos ao país, no início da década de 90 e já em pleno regime democrático, ajudámos a fundar o Instituto Nacional de Desenvolvimento das Pescas (INDP), ainda esperançados de que as pescas seriam o futuro da nossa pátria. Eram tempos de muito entusiasmo, numa altura em que todos os anos regressavam à terra dezenas de jovens recém-formados, recebidos todos com 2-3 (ou mais) propostas de trabalho num país com instituições e empresas sedentas de sangue novo e de diplomas universitários. Diplomas esses cunhados com os carimbos de universidades do mundo inteiro, desde universidades de países da velha Europa “ocidental”, das Américas (Norte e Sul), das Áfricas (branca e negra) e de países mais exóticos do ex-Bloco Soviético, (em muitos casos, os estudantes partiam para se formarem na União Soviética e voltavam com um diploma da Ucrânia, Azerbaijão ou outra república, cada qual com um nome mais estranho), ou ainda a Jugoslávia (de onde regressavam com certificados da Croácia ou da Sérvia, entre outros).
Nesse tempo, foi despejada em Cabo Verde uma autêntica Babel de conhecimentos científicos e técnicos, que só pela sua diversidade deveria ter-se traduzido pelo rápido desenvolvimento destas ilhas, o que, infelizmente, não foi o caso.
Foi, curiosamente, com a ajuda técnica da Islândia, que nessa altura já cooperava com Cabo Verde no domínio das pescas (quem no Mindelo não se lembra do navio FENGUR e da sua tripulação islandesa?), que começámos a compreender, via investigação aplicada, que os nossos recursos pesqueiros estavam longe de ser tão abundantes, a ponto de nos transformarem num país desenvolvido, seguindo o exemplo dos nossos primos afastados do Atlântico Norte.
Dos anos em que trabalhei no INDP, onde iniciei a minha carreira profissional, uma das melhores lembranças que guardo é o convívio com técnicos e dirigentes islandeses, gente boa e simples que nos explicava como a geração dos seus pais ainda tinha vivido na pobreza. Apesar disso, acabei por não conhecer a Islândia, o que teria acontecido se não tivesse tomado a decisão de seguir outros caminhos, procurando desafios mais aliciantes no mundo empresarial, ao cedo perceber que a única forma de combater a pobreza é através da criação da riqueza, e que quem cria riqueza são as empresas.
Tive amigos de infância que emigraram para a Islândia e um primo meu fez lá um mestrado e por isso mantive sempre algum contacto indirecto com esse pequeno país prenhe de bons exemplos. Como esquecermo-nos da forma como os islandeses destituíram e julgaram os seus governantes na sequência da crise financeira que atingiu o país? Um país que prendeu 29 banqueiros, demitiu dois primeiros-ministros e se recusou a pagar dívidas internacionais, dando um exemplo ao mundo de que tamanho não é documento.
Continuaremos a viagem por este surpreendente país tomba-mitos na próxima crónica.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 897 de 6 de Fevereiro de 2019.