2) Vamos exemplificar com duas pinturas do Gioacchino Passini, como mero pretexto para análise. Verificamos que o autor tem uma preocupação, uma meta e objectivo claros espelhados na sua obsessão para (re)produzir uma obra despida de conotações, sem alterações da percepção e fruição do real, uma “natureza”, tal e qual ela se nos apresenta, como se tratasse de uma foto registo/informativa, tout court, de um dado existente. A obsessão (que também existe em arte e é salutar como ponto de arranque e amiúde indispensável) aqui, nestas obras, nega qualquer princípio artístico, assumindo em si mesma a repulsa para com a atmosfera fascinante e activa da Arte; apenas persegue a (foto)cópia fidedigna do conhecido (postura “anti-arte”). A arte é do domínio da transcendência, do simbólico, do “(in)óbvio”, mesmo quando ela nos traz objectos conhecidos e, até, do “óbvio ululante” (urinol de Duchamp – a “Fonte”; recordados?”), estes hão-de estar enquadrados, (re)posicionados, inscritos e apresentados de forma ímpar e atípica na sua (su)real aparição para o mundo da fruição artística, caminhando para a significação difusa, transfigurada na desmaterialização de um contexto circular e finito (único mundo onde a imperfeição pode ser matéria da perfeição). ´
3) Não há arte em nenhum milímetro quadrado destas telas (opinião minha, com a qual concordo), por uma razão simples, não há nenhum traço plural, nenhum gesto impreciso, nenhuma cor descodificada no horizonte cintilante da imaginação, nenhuma forma desmaterializada para a significação a contrapor o significado de um significante (gesto), e, o mais exemplificativo - nenhuma intenção no primado da postura do autor que aponte, a priori, para uma atitude de abertura de espírito para a Arte (a antítese Duchampiana), quer laborando no encalço da beleza e do sublime de Kant, ou da fealdade horripilante, niilística, de Nietzsche – tudo é, sem nenhuma outra margem para o cogito, controlado a ponto de a obsessão - esta, especificamente, ser a antítese omnipresente daquela que traz para a Arte na sua acepção “consensual” mais elementar – a sua “invariável”, diga-se. A criatividade, aqui, se rarefaz na absoluta contraposição ao mundo fantástico da arte, é renegada, obsessivamente, num “ódio” pré-meditado e compulsivo, circunscrito na abordagem objectiva da produção artesanal de uma técnica-pela-técnica e ao serviço do significante óbvio. A fruta é a fruta, é uma fruta, é fruta, percorrendo o espaço e o tempo da sua elaboração, permanecendo fruta, e nada mais, para todos os tempos e fruições – a exemplificação cabal e perfeita de uma não Arte. Por esta antítese isola-se, para mim, uma invariável na nebulosa definição da Arte em todos os tempos.
4) Mais, para ninar os ânimos: não é demérito, nem juízo de valor, considera-las “não arte – Anti arte”, apenas é intenção demarcar as fronteiras movediças que separam as águas da arte e do resto (do seu inverso?). Estas obras são assaz bonitas e fruto de elevada capacidade técnica do autor (tais factos não estão em discussão, nunca estarão, para mim e através de mim); são de dificuldade extrema, impossíveis de reprodução por um ser humano que não tenha imanente essa vocação existencial (inata?), treinada e bafejada pelo divino, para a reprodução dessa habilidade valiosa do ponto de vista técnico, quase uma festa, mas, fora do mundo da arte, como é óbvio - elas não acrescentam nada à fotografia documental/ informacional/jornalística, a não artística, digo. Apenas e somente perseguindo este raciocínio pode-se apreender a razão da existência ou não de arte em determinadas construções da autoria única e exclusivamente humana, e, como é cristalino, esta análise é transversal, e válida, para qualquer género da criação humana com estatuto de Arte.
5) A “Fonte” de Marcel Duchamp não é arte pelo “urinol” em si, e, sim, pelo enquadramento contextual novo, especulativo e intrigante do mesmo; é pela interrogação aflitiva e infinitamente questionada que, ele, (des) contextualizando um significante, este, ganha ingresso cativo para o signo no mundo da Arte; fora desse entendimento lúcido e provocante, o “urinol” seria apenas mais uma peça industrial – tão-somente um recipiente de ácido úrico.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.