Arte e sua Antítese (1)

PorHermano Lopes da Silva,21 fev 2019 7:13

1) Saber pensar é o início, o resto é a destruição…A Arte tem definições que a própria definição “desconhece” ou tem dificuldade em abarcar de forma cabal, pois, é, no mais profundo sentido do termo, uma discussão filosófica complexa, labiríntica, traiçoeira, transportada num movediço terreno de sinuosa argumentação, aparentemente flutuando sobre as marés das épocas; no entanto, estes factos não são, de forma alguma, justificação para confusões elementares, sobretudo, da parte de cidadãos fazedores de opinião, por conseguinte, responsáveis pedagógicos (que seriam) para uma certa condição e condução, orientação e treino da população, ainda pouco esclarecida, precariamente formada e informada sobre esta questão.

2) Vamos exemplificar com duas pinturas do Gioacchino Passini, como mero pretexto para análise. Verificamos que o autor tem uma preocupação, uma meta e objectivo claros espelhados na sua obsessão para (re)produzir uma obra despida de conotações, sem alterações da percepção e fruição do real, uma “natureza”, tal e qual ela se nos apresenta, como se tratasse de uma foto registo/informativa, tout court, de um dado existente. A obsessão (que também existe em arte e é salutar como ponto de arranque e amiúde indispensável) aqui, nestas obras, nega qualquer princípio artístico, assumindo em si mesma a repulsa para com a atmosfera fascinante e activa da Arte; apenas persegue a (foto)cópia fidedigna do conhecido (postura “anti-arte”). A arte é do domínio da transcendência, do simbólico, do “(in)óbvio”, mesmo quando ela nos traz objectos conhecidos e, até, do “óbvio ululante” (urinol de Duchamp – a “Fonte”; recordados?”), estes hão-de estar enquadrados, (re)posicionados, inscritos e apresentados de forma ímpar e atípica na sua (su)real aparição para o mundo da fruição artística, caminhando para a significação difusa, transfigurada na desmaterialização de um contexto circular e finito (único mundo onde a imperfeição pode ser matéria da perfeição). ´

3) Não há arte em nenhum milímetro quadrado destas telas (opinião minha, com a qual concordo), por uma razão simples, não há nenhum traço plural, nenhum gesto impreciso, nenhuma cor descodificada no horizonte cintilante da imaginação, nenhuma forma desmaterializada para a significação a contrapor o significado de um significante (gesto), e, o mais exemplificativo - nenhuma intenção no primado da postura do autor que aponte, a priori, para uma atitude de abertura de espírito para a Arte (a antítese Duchampiana), quer laborando no encalço da beleza e do sublime de Kant, ou da fealdade horripilante, niilística, de Nietzsche – tudo é, sem nenhuma outra margem para o cogito, controlado a ponto de a obsessão - esta, especificamente, ser a antítese omnipresente daquela que traz para a Arte na sua acepção “consensual” mais elementar – a sua “invariável”, diga-se. A criatividade, aqui, se rarefaz na absoluta contraposição ao mundo fantástico da arte, é renegada, obsessivamente, num “ódio” pré-meditado e compulsivo, circunscrito na abordagem objectiva da produção artesanal de uma técnica-pela-técnica e ao serviço do significante óbvio. A fruta é a fruta, é uma fruta, é fruta, percorrendo o espaço e o tempo da sua elaboração, permanecendo fruta, e nada mais, para todos os tempos e fruições – a exemplificação cabal e perfeita de uma não Arte. Por esta antítese isola-se, para mim, uma invariável na nebulosa definição da Arte em todos os tempos.

4) Mais, para ninar os ânimos: não é demérito, nem juízo de valor, considera-las “não arte – Anti arte”, apenas é intenção demarcar as fronteiras movediças que separam as águas da arte e do resto (do seu inverso?). Estas obras são assaz bonitas e fruto de elevada capacidade técnica do autor (tais factos não estão em discussão, nunca estarão, para mim e através de mim); são de dificuldade extrema, impossíveis de reprodução por um ser humano que não tenha imanente essa vocação existencial (inata?), treinada e bafejada pelo divino, para a reprodução dessa habilidade valiosa do ponto de vista técnico, quase uma festa, mas, fora do mundo da arte, como é óbvio - elas não acrescentam nada à fotografia documental/ informacional/jornalística, a não artística, digo. Apenas e somente perseguindo este raciocínio pode-se apreender a razão da existência ou não de arte em determinadas construções da autoria única e exclusivamente humana, e, como é cristalino, esta análise é transversal, e válida, para qualquer género da criação humana com estatuto de Arte.

5) A “Fonte” de Marcel Duchamp não é arte pelo “urinol” em si, e, sim, pelo enquadramento contextual novo, especulativo e intrigante do mesmo; é pela interrogação aflitiva e infinitamente questionada que, ele, (des) contextualizando um significante, este, ganha ingresso cativo para o signo no mundo da Arte; fora desse entendimento lúcido e provocante, o “urinol” seria apenas mais uma peça industrial – tão-somente um recipiente de ácido úrico.

Pintura
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Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.

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Autoria:Hermano Lopes da Silva,21 fev 2019 7:13

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  21 fev 2019 7:13

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